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Sem emplacar no cinema, Parker, de Richard Stark, acerta o tom em HQ

Roberto Sadovski

29/06/2014 22h23

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Parker, assaltante por profissão, assassino quando necessário, casca grossa por natureza e sem uma gota de nobreza na alma. É a criação mais espetacular do escritor Donald Westlake – que o fez sob o pseudônimo Richard Stark. Ele escreveu as crônicas de Parker num fôlego só, de 1962 a 1974, e retomou os livros entre 1997 e 2008. Desde que a primeira de suas vinte e quatro aventuras foi publicada o cinema vem flertando com o anti-herói. Longe de ser um mocinho boa praça, Parker é implacável e vingativo e, nas palavras tecidas por Westlake/Stark, tornou-se protagonista de uma das mais sensacionais séries de literatura criminal contemporânea. Apesar do relacionamento estreitíssimo com Hollywood – ele foi indicado ao Oscar pela adaptação de Os Imorais, de Jim Thompson, que virou filme em 1990 por Stephen Frears –, o autor sempre foi reticente em entregar sua criatura de bandeja. Quando o fez, exigiu que ele não fosse batizado Parker. Tinha lá seus motivos.

Escrevo isso minutos depois de terminar Slayground, quarta adaptação em quadrinhos do trabalho de Westlake por Darwyn Cooke. A "bandeira" que adorna a HQ é Richard Stark's Parker. Merece explicitar criador e criatura. Cooke entende o mundo sórdido, esfumaçado e violento imaginado por Stark e habitado por Parker. As histórias são uma verdadeira aula de narrativa: zero gordura, direto ao ponto, nem um traço, nem uma letra fora de lugar. Geralmente a trama coloca o protagonista em uma sinuca e resolve a situação sem firulas – violentamente, se necessário. Sempre é. A leitora é supersônica, e é um prazer planar pelo traço de Cooke: no papel grosseiro, sem cor, um lápis nervoso e preciso, ele traduz à perfeição o que é Parker. Donald Westlake ficaria orgulhoso. Pena que ele não viveu para ver sua obra reverenciada de maneira tão bacana: morto em 2008 aos 75 anos, o autor trabalhou próximo à Cooke na produção da primeira adaptação, The Hunter, mas não chegou a ler o produto final, lançado no ano seguinte. De tão satisfeito estava com o que via tomar forma, ele autorizou o uso do nome original do personagem, Parker. O que, até então, não havia feito.

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Lee Marvin em À Queima Roupa

O diretor Jean-Luc Godard foi o primeiro a usar Parker como matéria-prima. Made in USA, de 1966, empresta elementos de The Jugger – mas o cineasta francês terminou processado por Donald Westlake por nunca ter pago um centavo pela apropriação de seu trabalho. Melhor sorte teve o mestre John Boorman. Com Lee Marvin no papel de Walker (Parker, claro), ele adaptou The Hunter como À Queima Roupa e deixou os críticos (e fãs do escritor) de queixo caído: Marvin era Parker. Embora o público da época tenha ignorado o filme, o tempo o transformou em cult – e com razão. O filme de Boorman é como os quadrinhos de Cooke: direto ao ponto. De lá para cá, Parker ganhou novos nomes e vários intérpretes: Michel Constantin (Georges em Mise à Sac, 1967), Jim Brown (McClain em The Split, 1968), Robert Duvall (Macklin em The Outfit, 1973), Peter Coyote (Stone em Slayground, 1983).

Em 1999, Mel Gibson tentou convencer Westlake a liberar o nome Parker para o protagonista de O Troco, que levaria a trama de The Hunter mais uma vez ao cinema. Não conseguiu, e o personagem foi renomeado Porter. Foi o menor dos problemas. O diretor Brian Helgeland, embora tenha os créditos principais, não viu sua versão do roteiro nos cinemas. Com seu filme considerado violento e ambíguo demais para as plateias ianques, ele foi substituido pelo desenhista de produção John Myhre, que trabalhou em cima de um roteiro reescrito por Terry Hayes e refilmou cerca de 30 por cento do filme. A versão do diretor de Helgeland só foi revelada quase uma década depois. Payback Straight Up foi lançado em DVD e blu ray em 2007: é mais enxuto que o filme que chegou aos cinemas e mais fiel ao estilo de Donald Westlake/Richard Stark.

Mel Gibson em O Troco

Mel Gibson em O Troco

Nenhum filme, porém, chega perto da tensão explícita e da pegada visceral das adaptações para quadrinhos de Darwyn Cooke. The Hunter foi o primeiro livro a ganhar novo tratamento pelo artista. A ele se seguiram The Outfit, The Score e Slayground – um novo volume será lançado ano que vem (por enquanto, ainda não há data para que Richard Stark's Parker seja lançado no Brasil, mas ficarei de olho). O maior acerto é manter as tramas no começo dos anos 60, quando a sensação de triunfo e a explosão do "sonho americano" começava a ruir com a entrada dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. Parker, de passado obscuro, aproveita o clima decadente para envolver-se em golpes mais e mais ambiciosos. O tom, a ambientação, a recriação de época e os personagens perfeitamente delineados em tramas simples e surpreendentes são o grande trunfo das HQs.

Ler Richard Stark's Parker, por Darwyn Cooke, é também uma forma de corrigir uma injustiça criminosa: a pavorosa adaptação para cinema dirigida por Taylor Hackford em 2013. Cinco anos após a morte de Donald Westlake e o único filme que usa o nome real do protagonista: Parker. Hackford, um bom cineasta (A Força do Destino, Advogado do Diabo, Ray), mirou em fazer um filme noir ao adaptar Flashfire, escrita na retomada do personagem por Westlake/Stark. Primeiro, errou no protagonista: Jason Statham tem o físico, mas ele não sai de sua zona de conforto e jamais parece ameaçador. Jamais. Errou no roteiro que complica uma trama de vingança simples e sangrenta. Errou no tom, deixando de fora a visão cínica de Parker sobre Palm Beach, palco do clímax da história. Errou em domesticar e/ou coreografar a violência. E errou com Jennifer Lopez – porque, oras, é Jennifer Lopez. Assisti a Parker por gostar do personagem. Ainda bem que Darwyn Cooke estava à mão para o resgate.

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Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.