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Gaiman, Miller e as HQs que não saem de cena (e algumas que podiam voltar)

Roberto Sadovski

03/09/2014 07h12

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Histórias em quadrinhos eram diversão descartável – literalmente. Frank Miller disse recentemente à Playboy gringa que tudo mudou quando Will Eisner lançou Um Contrato com Deus, popularizou o termo graphic novel e mostrou que gibis podiam ter sobrevida nas prateleiras de uma livraria. Antes disso, Miller e um punhado de criadores de quadrinhos contemporâneos arriscavam tudo em gibis de super-heróis mensais porque achavam que, passado o mês, ninguém nunca mais ia ler aquilo. Estavam errados, claro. As editoras descobriram que, assim como os livros, os quadrinhos podiam ter sobrevida em livrarias e no mercado direto tanto em graphic novels como em coleções encadernadas de arcos selecionados. Não há motivo, afinal, para um gibi existir em um curto período e se tornar item de colecionador, assunto em rodas de nerds apaixonados.

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Pensei nisso quando vi edições luxuosas de obras do britânico Neil Gaiman de volta às lojas. A edição definitiva de Morte coleciona as duas minisséries protagonizadas pela irmã mais velha do Sandman, criacão máxima de Gaiman, mais um punhado de contos soltos com a personagem, uma visão fofa, descoladinha e gente fina da grande ceifadora. O belíssimo Sandman: Os Caçadores de Sonhos, parceria de Gaiman com o japonês Yoshitaka Amano, também está de volta em livrarias e lojas especializadas (dá um pulo na Comix que você acha tudo fácil). Os tijolos juntam-se aos quatro volumes de Sandman que a mesma Panini já lançou, e seguem as hoje raras edições publicadas pela Conrad e, lá atrás, pela Globo.

Para o fã de gibis não há época melhor. A nostalgia pelo pavoroso (e necessário) formatinho em que os super-heróis eram lançados entre os anos 70 e 90 deu lugar a edições bem cuidadas, com extras, entrevistas, esboços e outros mimos. Desde que o cinema ajudou a cimentar as histórias em quadrinhos como mídia mainstream, novos leitores não são privados de ler pérolas do Batman como O Cavaleiro das Trevas (também de volta às lojas em uma terceira edição de luxo, isso só contando a publicação pela Panini), A Piada Mortal e Ano Um.

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Batman – O Cavaleiro das Trevas by Frank Miller

O Incal, ficção científica cabeçuda de Moebius e Jodorowsky, antes raridade incompleta no Brasil, está disponível em um volumão bacana. Gibis de heróis fundamentais da Marvel estão sempre pipocando em coletâneas a preço camarada – a Marvel também ganhou uma coleção de mais de 50 volumes com algumas de suas melhores sagas, disponível quinzenalmente nas bancas. Isso sem falar de álbuns como Persépolis, Maus, Retalhos – nenhum dependendo de recolhimento em bancas, tudo ao alcance de um clique.

Alan Moore não teve essa visão a longo prazo quando criou Watchmen. O contrato com a DC estipulava que, ao se tornar esgotada em bancas e livrarias, os personagens reverteriam para o autor. Será que Moore achou mesmo que a DC ia deixar de reimprimir Watchmen indefinidamente? (Por sinal, uma edição de luxo zerada também está disponível no Brasil)

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O Incal by Jodorowsky e Moebius

Entretanto, é aí que está o problema. Os gibis fundamentais, os essenciais e seminais estão disponíveis. Enquanto isso, centenas de histórias espetaculares só foram publicadas no Brasil uma única vez e hoje existem apenas nas mãos de alguns colecionadores. O mercado americano absorve muito melhor a demanda, e sempre surpreende com uma edição nova e cheia de extras de alguma história obscura. Uma centena de boas histórias já publicadas no Brasil mereciam um resgate – isso sem falar de títulos que jamais deram as caras por aqui, como a genial adaptação que Mike Mignola fez para Drácula de Bram Stoker, o filme do Coppola, ou o genial Cerebus, de Dave Sim. A lista abaixo é pessoal e egoísta, com histórias que eu adoraria ter em mãos em português sem precisar fuçar em sebos. Mesmo com Alan Moore fulo da vida com minha atitude…

CINDER & ASHE
(Gerry Conway e José Luis García-López, 1988)

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Uma dupla de investigadores – um veterano do Vietnã e uma jovem, filha de um soldado americano e uma jovem vietnamita, que ele próprio resgatou ao fim do conflito – trabalha no desaparecimento de uma jovem. As coisas complicam quando um algoz do passado da dupla retorna em busca de dinheiro e vingança. Conway escreve uma história policial que não ficaria mal se virasse filme nas mãos de Alan Parker. Mas é o traço elegante, realista e dinâmico do mestre García-López (que também desenhou Esquadrão Atari, mas essa é uma outra história…) que mantém Cinder & Ashe firme no chão. A série original acabou de ganhar um novo encadernado na gringa.

O SOMBRA: SANGUE E JULGAMENTO
(The Shadow: Blood & Judgement, Howard Chaykin, 1986)

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Na leva pós-Crise em que a DC reorganizou sua linha de personagens terminou com uma polêmica gigante em mãos. Com a direção de Howard Chaykin, O Sombra deixou as histórias clássicas das pulps para trás e foi modernizado em um mundo violento, de humor negro e nunca menos que espetacular. Os puristas chiaram. Mas a série de Chaykin mostrou o modo certo de dar reboot em um personagem clássico, como modernizar sem perder o que faz dele tão especial. A minissérie original teve continuidade mensalmente, num time igualmente sensacional que incluia Andy Helfer, Bill Sienkiewicz e Kyle Baker. Coisa fina.

JUSTIÇA LIMITADA
(Justice Inc., Andy Helfer e Kyle Baker, 1989)

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Olhando para seu passado, a DC (e você vai ver muita coisa da DC em minha lista…) deu a Helfer e Baker a missão de revitalizar o Vingador, herói pulp clássico. O resultado é uma trama intrincada de espionagem, ficção científica e filme noir, trazendo a origem do homem capaz de mudar seu rosto para assumir qualquer identidade. Nas mãos do governo, uma arma política poderosa… Mas o que fazer quando o gatilho é apontado para outra direção? A arte de Kyle Baker, vale ressaltar, não é menos que brilhante. Publicada no Brasil à época, encontra-se indisponível inclusive nos Estados Unidos. Vale a caçada!

MARSHAL LAW
(Pat Mills e Kevin O'Neill, 1987)

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O super-herói com ódio patológico de super-heróis é uma das criações mais subversivas, violentas e satíricas dos quadrinhos do gênero. Pat Mills e Kevin O'Neill (que atialmente ganha a vida ilustrando os contos da Liga Extraordinária com Alan Moore) quebraram convenção por convenção dos gibis de heróis, jogando na mistura arquétipos para lá de familiares para surgir com uma saga sobre poder e abuso de poder. Garth Ennis e Darick Robertson aprenderam bem a lição com a recente série The Boys, mas lhes falta a escala épica e futurista de Marshal Law – que recentemente foi republicado numa edição luxuosa pela DC.

AMERICAN FLAGG!
(Howard Chaykin, 1983)

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Howard Chaykin sempre teve um estilo, digamos, cinematográfico. Em American Flagg!, o traço dinâmico e a narrativa inovadora (da disposição dos quadrinhos às onomatopéias, tudo gritava novidade) ficou à cargo de uma trama futurista e verdadeiramente visionária. O ator Reuben Flagg perde o emprego quando a produtora de sua série o substitui por uma cópia digital (!). Ele vai trabalhar na segurança de uma das corporações que substituiu os países no futuro (!!), lidando com corrupção e investigando um assassinato à medida em que vai aprendendo as regras do jogo. O futuro de American Flagg!, publicado originalmente pela First Comics, é, hoje, assustadoramente preciso. Um tijolão da Image republicou o primeiro ano da série – justamente a fatia que vale, claro. No Brasil, Flagg chegou a ter título próprio mas nunca pubicado até o fim.

GAVIÃO NEGRO
(Hawkworld, Timothy Truman, 1989)

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O Gavião Negro sempre foi uma bagunça editorial. Timothy Truman conseguiu o impossível nessa minissérie do fim dos anos 80 ao reposicionar o personagem. Ele deixou o aspecto medieval e místico do arqueólogo Carter Hall e transformou sua saga em uma ficção científica distópica e fantástica. O protagonista agora é Katar Hol, policial do planeta Thanagar, acusado de um crime que não cometeu, isolado por uma década e de volta à civilização um homem mudado. A trama que mistura batalhas espaciais com o que parece um episódio de Hill Street Blues acertou em cheio – mesmo que depois a DC tenha feito o favor de bagunçar a saga do Gavião Negro mais uma vez. Hawkworld foi relançado em uma edição bacana nos Estados Unidos.

OS CAÇADORES
(Green Arrow: The Longbow Hunters, Mike Grell, 1987)

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Com o sucesso de Arrow na TV, a minissérie que transformou Oliver Queen num caçador urbano merecia republicação por aqui – nos Estados Unidos, está disponível em um volume de luxo. Mike Grell, criador do espetacular Jon Sable, tirou do Arqueiro Verde quaisquer resquícios que faziam dele um "super-herói". Ele foi para uma cidade real, Seattle, e trocou as flechas especiais por armas letais – que ele não hesita em usar, principalmente depois da tortura sofrida por sua namorada, Dinah Lance, a Canário Negro. Os Caçadores apresentou vários elementos que perduram até hoje nas histórias do personagem – como a arqueira Shado – e mostrou que uma boa história em quadrinhos, mesmo inserida no universo fantástico dos super-heróis da DC, não precisa de superpoderes para ser incrível.

O JUSTICEIRO MAX
(The Punisher MAX, Garth Ennis, vários artistas, 2004/2008)

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Um pouco de história. Nos esquecíveis anos 90, a Marvel "matou" o Justiceiro, que voltou como um vingador a serviço de anjos rebeldes. Sério. Garth Ennis jogou essa ideia estapafúrdia pela janela na maxi série "Bem-Vindo de Volta, Frank", que recolocou o Justiceiro no Universo Marvel com violência e humor negro. Mas a coisa pegou quando o personagem passou para o selo MAX, destinado a HQs mais adultas. Assim, por sessenta edições Ennies e um grupo de desenhistas criaram as melhores histórias do Justiceiro de todos os tempos. Sem exagero. Operando em um mundo sem super-heróis, Castle trava sua luta contra o crime em escala global, incluindo terroristas, traficantes de mulheres, gente perigosa do mundo real em sua guerra no papel. Nos EUA, The Punisher MAX rendeu cinco edições hardcover – alguns já impossíveis de encontrar.

ROCKETEER
(The Rocketeer, Dave Stevens, 1982/1989)

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Dave Stevens morreu em 2008, aos 52 anos, vítima de leucemia. Seu legado, porém, é eterno. Publicado em diferentes magazines nos anos 80, republicado em graphic novels e one shots depois, o Rocketeer, uma declaração de amor aos seriados de aventura dos anos 30 e 40, bem aos moldes Indiana Jones, teve uma única edição no Brasil. É um pecado. A série segue o piloto Cliff Secord e suas aventuras ao recuperar um foguete compacto que o possibilita voar. Mas o que ele quer mesmo é conquistar em definitivo o coração de sua amada Betty. Os anos 90 viram um filme ser produzido, o novo milênio trouxe diversos criadores finalmente dando continuidade ao personagem de Stevens. E a série original ganhou um caixote luxuoso pela IDW – que, acredite, você não é feliz enquanto não ler.

AKIRA
(Katsuhiro Otomo, 1982/1990)

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É inimaginável que uma das HQs mais influentes de todos os tempos não exista no Brasil. Pior: tirando as 38 edições publicadas pela Globo no século passado, Akira em português é sonho distante. Na gringa, é outro papo. No Japão, a obra máxima de Katsuhiro Otomo saiu na revista Young Magazine, depois colecionado em seis volumes. Nos EUA, saiu pelo selo Epic, da Marvel, colorizado digitalmente pelo mestre Steve Oliff. Essa versão em cores é rara como água no deserto, mas Akira continuou nas livrarias em seis volumes preto e branco pela Dark Horse, depois pela Random House. A história? Kaneda, Tetsuo, cyberpunk, distopia, Neo-Tóquio, futuro pós-apocalíptico, telepatia, telecinese, filosofia, corrupção governamental, honra, motocicletas incríveis. E é isso. Só que é mais.

 

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.