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Garota Exemplar prova que David Fincher não consegue fazer filme ruim

Roberto Sadovski

01/10/2014 21h10

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Vamos falar sobre superfícies. "Superficialmente", Garota Exemplar, novo e sensacional filme dirigido por David Fincher, é sobre casamento. Os sacrifícios, as dificuldades, o amor paralelo a sentimentos pouco nobres – tudo entregue em um pacote de crime, mesquinhez e o lado sujo da "pequena América". É, sim, sobre tudo isso. Mas, 22 anos e dez filmes depois, dá para saber que Fincher não é alguém que observa apenas a superfície. Usando como ponto de partida o best seller de Gillian Flynn (que também assina o roteiro), ele constroi uma sátira (sátira!) carregada de fel sobre a cultura das celebridades, o público como manada, o poder da mentira e o amor como desculpa. Ah, e sobre casamentos. Claro.

Por tabela, redescobre Ben Affleck como um ótimo ator que usa sua persona para – e aí você já adivinhou! – manipular a percepção do público.

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Amy (Rosamund Pike), a garota-exemplar-desaparecida

Affleck é Nick Dunne, jornalista de entretenimento que conhece, se apaixona e se casa com a "mulher perfeita", Amy (Rosamund Pike, que tem aqui a chance de devorar um grande papel e não a desperdiça). Cinco anos de falta de emprego, dinheiro e perspectiva depois, o casamento perfeito está na UTI, como Nick mostra quando vai trabalhar em seu bar (chamado O Bar) e confessa sua infelicidade à irmã gêmea, Margo (Carrie Coon). Ao chegar em casa, porém, Amy sumiu. Desapareceu. Há indícios de agressão, há manchas discretas de sangue, há uma dupla de policiais (Kim Dickens e Patrick Fugit) que até simpatizam com Nick, mas, nah, sabem, que ele é culpado. De alguma coisa. Jogue na fogueira um ex-namorado de adolescência levemente fora do eixo (Neil Patrick Harris), um advogado de celebridades (Tyler Perry) e uma fofoqueira televisiva (Missi Pyle) e o circo está armado. Garota Exemplar surge, portanto, como um perfeito whodunit, um filme em que a platéia tenta, ao lado dos personagens, descobrir que o culpado pode não ser o mordomo.

Mas existe algo além da superfície (olha ela….) no olhar de Fincher. O crime, ou suposto crime, é o martelo na rachadura da sociedade como platéia – e, como tal, vive para ser entretida. No texto de Flynn (o livro, não o roteiro), existe dúvida da culpa de Nick; o filme logo toma uma posição. Não precisa muito para ele passar de marido apaixonado e preocupado a "homem mais odiado da América". Ver Affleck, o astro hollywoodiano que experimentou recentemente um novo fôlego em sua carreira, acuado pelo dedo inquisidor da opinião pública, é um deleite. A narrativa fragmentada entre seu ponto de vista e o de Amy, que surge em anotações em seu diário e diversas cenas em flashback, começam a compor um cenário em que a verdade é o que menos importa para essa gente. As viradas na trama são tão inesperadas quanto sensacionais (que tal uma surpresa no segundo ato que muda o conceito de final-surpresa?) , desenrolando-se para um desfecho súbito, violento e poderoso.

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Affleck, polícia, família: quem é o culpado… será que existe algum?

Pode parecer clichê colocar Fincher para dirigir um filme sobre crimes e criminosos – o que ele faz em seu café da manhã depois de petardos como Se7en e Zodíaco. Como todo gênio, porém, ele não está interessado na percepção superficial (mais uma vez), e sim no que move os jogadores neste tabuleiro. Nenhum de seus filmes é povoado por pessoas perfeitas; na verdade, são as defeituosas que ele demonstra mais simpatia, pois é por meio delas que ele vai descortinar sua visão de mundo. Sem falhas, sem conflito, não há espaço para dramaturgia, e nada empolga Fincher mais que uma boa história. Mesmo quando ele começa no pior projeto do planeta: Alien3, filme de comitê, desenhado por executivos de um estúdio que queriam qualquer coisa, menos a visão de um cineasta genial. É seu filme mais irregular (mas longe de ser ruim), e a partir de Se7en ele decidiu que só entrava no jogo se fosse com suas regras.

Se7en é uma pérola, tanto de estilo quanto de substância, e marcou Fincher como um cineasta de olho no lado sombrio do ser humano. O pouco visto Vidas em Jogo, com Michael Douglas no papel de um milionário que, entre outras coisas, contempla o suicídio, foi aperitivo para Clube da Luta, ainda sua obra-prima. Foram filmes que definiram a década de 90, o começo da jornada de Fincher como realizador. Quarto do Pânico surgiu como um respiro, um exercício hitchcockiano bem sucedido que sustenta a trama reta com um elenco afiadíssimo (Jodie Foster, Forest Whitaker, Jared Leto, Dwight Yoakam e aquela mocinha de Crepúsculo quando tinha um repertório maior de expressões faciais) e um exibicionismo técnico de cair o queixo.

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E Fincher ainda queria fazer Homem-Aranha...

Em Zodíaco ele descobriu, antes de todo o planeta, que colocar Tony Stark e Bruce Banner num mesmo filme era acertar em cheio. É também seu filme mais pessoal, já que Fincher buscou em suas memórias sobre o assassino que aterrorizou São Francisco nos anos 70 o medo que permeia cada cena do filme. Mesmo O Curioso Caso de Benjamin Button, um pseudo-Forrest Gump com Brad Pitt envelhecendo em reverso, ainda acerta golpes emocionais certeiros. A Rede Social trouxe uma urgência moderna sobre pessoas falhas – e reais, e modernas, e relevantes – que poucos cineastas teriam a mão certa para conduzir. Millennium: Os Homens Que Não Amavam as Mulheres é Fincher a serviço da "grande Hollywood", ainda assim emprestando elegância e apuro visual a uma trama sobre coisas horríveis.

Garota Exemplar pode ser resumido da mesma forma: beleza e elegância para falar sobre pessoas horríveis que fingem ser – ou querem ser – melhores do que realmente são. Nick Dunne, bom moço, certinho, #SQN, é quem surge como nosso espelho. Mas, acredite, é Amy Dunne quem vai assombrar seus pensamentos.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.