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A Entrevista: Eu vi o filme que a Coreia do Norte não quer que o mundo veja

Roberto Sadovski

19/12/2014 18h59

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A Entrevista é sensacional! É ácido, profano, ousado, sem o menor freio moral, disposto a ofender, satirizar e fazer graça de uma situação absurda. É um dos filmes mais engraçados do ano – e justamente por isso que a Coreia do Norte não quer que você assista. A situação é bizarra. Um governo ditatorial incomodado com uma comédia boboca ianque, resultando em ataques de hackers, ameaças nada veladas e o cancelamento – até segunda ordem – do lançamento do filme. O resultado é o mundo ainda mais curioso com o filme, com o tamanho do vespeiro cutucado por Seth Rogen, Evan Goldberg, James Franco e cia. Afinal, é mesmo pra tudo isso?

A resposta simples? Claro que sim! A Entrevista não é uma comédia bobinha, é um petardo de incorreção política apoiado em um roteiro esperto e personagens muito bem desenhados. O centro da coisa é Dave Skylark (Franco), apresentador de um programa ao estilo TV Fama ou TMZ, em que os famosos revelam seus maiores segredos – a primeira entrevista mostrada no filme, com Eminem, é tão inacreditável e absurda quanto de rolar no chão de rir. Mas seu produtor, Aaron Rapoport (Rogen), começa a pensar se essa vida de frivolidade não pode dar um passo maior. Afinal, a ótima audiência de Skylark é diretamente proporcional ao oba oba de celebridades ridicularizadas que desfilam em seu programa.

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Randall Park, perfeito como o ditador Kim Jong-un

A coisa muda quando a dupla descobre que Kim Jong-un, ditador da Coreia do Norte, é um grande fã do programa. O tiro no escuro de tentar uma exclusiva com o líder do país mais recluso do planeta dá frutos quando Aaron consegue armar o papo, em Pyongyang e transmitido ao vivo para o mundo. E a coisa complica ainda mais quando uma agente da CIA (Lizzy Kaplan) atrela uma missão à entrevista: com um arsenal atômico cada vez mais poderoso, o mundo seria eternamente agradecido se Dave e Aaron pudessem apagar Kim, envenená-lo com um reagente químico e dar uma chance à paz. E por que não?

A Entrevista vai do absurdo ao inacreditável quando apresentador e produtor chegam à Coreia e Kim se mostra a Dave como um sujeito sensível e incompreendido, um homem colocado em uma posição de poder mas que, no mundo, só quer o mesmo que todo sujeito com dinheiro e tempo de sobra: encher a cara, transar com o máximo de modelos possível e se divertir. Dividido ente a missão e a nova amizade com alguém que finalmente o entende ("Eles nos odeiam porque não são a gente", diz), Dave pode colocar tudo a perder. A química entre Franco e Rogen está ainda mais afiada que em Segurando as Pontas e É o Fim, mas a grande surpresa é Randall Park: no papel de Kim, ele vai do adolescente tardio, um bufão traumatizado pelo papai, a manipulador cruel que confirma os piores temores do mundo em um sorriso de canto de boca, um olhar que salta com precisão da ingenuidade à psicopatia. Franco e Rogen são o centro de A Entrevista, mas é fascinante observar a bomba relógio armada por Park prestes a detonar.

Seth Rogen;James Franco;Lizzy Caplan

Franco e Rogen recebem suas ordens de Lizzy Caplan, uma agente da CIA

SPOILERS! 

E o que exatamente Kim Jong-un não quer que o mundo veja em A Entrevista?  Na sátira conduzida por Rogen e Goldberg, o ditador é mostrado como uma criança birrenta. Todo seu objetivo é manipular Dave Skylark para mostrar a Coreia como um país próspero e com o povo feliz. "Melzinho na chupeta" é a expressão repetida ao longo do filme: personagens manipulam mostrando/dizendo exatamente o que o outro espera. É um jogo de sedução canalha, e é exatamente assim que Kim entra na cabeça de Skylark, fazendo o apresentador pensar que ele não passa de um sujeito que busca a constante aprovação do pai morto, que é um coitado em uma posição difícil. Para piorar, Kim é fã de Katy Perry (ele chora com "Firework") e sabe que esse lado sensível é sua maior fraqueza, já que o povo de seu país o vê como um Deus que se alimenta de luz e não tem funções biológicas ativas ("Eu tenho brioco, Dave", confessa).

Outro ponto que A Entrevista levanta é que, por trás dos fanáticos, a Coreia do Norte teria muita gente, inclusive no círculo interno de Kim, disposta a ajudar em sua execução para transformar o país numa verdadeira democracia. Isso é representado por Sook (Diana Bang), a Ministra de Informação da Coreia que, além de deixar o personagem de Seth Rogen excitado como adolescente, ajuda a dupla a destruir a imagem pública de Kim. O que, claro, é o que acontece no momento da proverbial entrevista, quando Dave e Kim começam a papear em uma transmissão global, seguindo um roteiro armado pelo ditador – mas destruído com maestria por Skylark. Kim Jong-un, o ditador chorão, o moleque gordinho e afeminado que sofreu bullying do próprio pai e quer mostrar ao mundo como ele é machão ao apertar um botão nuclear. É isso que ele não quer que o mundo veja? Ah, vai lavar a louça, Kim!

FIM DOS SPOILERS!

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Já é hora de liberar o filme na internet? Passou da hora!

A Entrevista é um deleite para quem busca uma comédia de primeira. A estrutura narrativa convencional ganha fôlego com as gags salpicadas pelo roteiro: o encontro de Aaron com um tigre (e o lugar nada cômodo que ele é obrigado a esconder um equipamento enviado pela CIA); o uso do veneno fornecido pela agência para apagar o ditador, que termina no alvo errado; a burrice americana ampliada por cada frase de Skylark, um sujeito completamente sem noção do tamanho da encrenca em que se meteu; o clímax, absurdamente violento, totalmente desproporcional e para ser aplaudido em pé.

Igualmente desproporcional é a reação do Kim da vida real e sua retaliação patética contra o trabalho de um estúdio de cinema em lançar o que não é nada além de uma sátira. Seu pai, Kim Jong-il, foi ridicularizado (junto com toda Hollywood liberal) no excelente Team America, que Matt Stone e Trey Parker fizeram em 2004. O esculacho foi muito mais agudo que este de A Entrevista, e nem assim houve essa comoção – talvez por Il ser fã de cinema, como o próprio Seth Rogen me contou há algumas semanas, talvez por seu filho ser um completo lunático, vai saber. O fato é que o filme de Rogen e Evan Goldberg toca em todas as feridas certas e encontra em Kim Jong-un o personagem perfeito para uma sátira afiada sobre a cultura de celebridades, a superficialidade de um naco considerável do jornalismo e o poder nas mãos de um moleque inconsequente. Se a Coreia do Norte se mostra tão incomodada, é sinal de que o filme funciona. Pena que, pelo andar da carruagem, o resto do mundo não vai poder formular sua própria opinião.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.