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Os Dez Mandamentos: o filme mais visto é também o menos falado da história

Roberto Sadovski

12/04/2016 13h43

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Duas semanas atrás, meu telefone tocou numa quinta-feira tranquila. Era oprodutor de um programa dominical da Record, interessado em minha disponibilidade para participar de um quadro sobre o "triunfo" de Os Dez Mandamentos. A novela, alçada à filme, logo seria a maior bilheteria de um filme nacional de todos os tempos – ou pelo menos desde que os ingressos vendidos passaram a ser contados e reportados. O que a produção do tal programa queria era um crítico de cinema para "comentar o sucesso do filme, como ele estava mudando a história do cinema brasileiro e de que forma sua qualidade irretocável seria influência para nossa cinematografia". Não entendi nada. Prontamente expliquei ao moço que achava estranho a Record celebrar um sucesso-fantasma, de um filme com ingressos esgotados e salas vazias. Disse que, desde sua estreia, tenho observado que não existe absolutamente nenhuma conversa em torno do filme que não sejam os números comprados com o dinheiro dos fieis. Perguntei se ele ao menos havia lido minha crítica de Os Dez Mandamentos, um dos piores filmes na memória recente – e, agora, uma vergonha marcada em nossa história. Ele ficuo constrangido, refutou o que eu disse ("O filme lotou sessões no Center Norte, eu vi", bradou), desconversou, tentou defender o indefensável e, por fim, rapidinho desligou o telefone.

Vamos aos fatos. No último dia 10 de abril, Os Dez Mandamentos bateu Tropa de Elite 2 e, com 11,205 milhões de ingressos, tornou-se o filme nacional com mais bilhetes vendidos – e o terceiro de todos os tempos, ainda atrás de Titanic e Tubarão. A contagem começou nos anos 70, com a criação da Embrafilme, e ainda é o norte da produção em cartaz no país. Vamos a mais fatos. O filme de José Padilha, que bateu em 11,146 milhões de ingressos em 2010, foi um fenômeno pop, com salas de cinema lotadas e assunto dominante dentro e fora do mercado, entre cinéfilos e curiosos. Ao lado do primeiro longa que narrou um recorte da vida do capitão Nascimento, policial do BOPE interpretado por Wagner Moura, Tropa de Elite 2 é, hoje, parte do zeitgeist, com frases do filme como parte do vocabulário, personagens bem desenhados e com arcos dramáticos completos, e uma trama que tocou forte no momento que o país atravessava (e ainda atravessa) de forma incisiva. Os Dez Mandamentos? Nada. Zero. Não existe burburinho sobre o filme, sobre a interpretação da história bíblica, sobre atores, personagens, influência, estética, inovação. Nada.

O que está em jogo é o papo do púlpito. A estratégia é alimentar mais uma história de sucesso da Universal e adicionar mais uma peça para conversão de fiéis. "Somos número um" e tudo mais. Basicamente é pregar para os convertidos, já que ninguém além de quem já frequenta os cultos da igreja cai no papo do triunfo construído de forma artificial. Mas não é um movimento inofensivo. De imediato, as redes sociais fervilharam com opiniões de quem trabalha no mercado. Produtores, diretores e artistas logo começaram um coro para que a Ancine, agência reguladora do nosso cinema, reveja os critérios para aferir o sucesso de um filme. Existem, afinal, prêmios (em dinheiro, em incentivo) para produtoras que batem um certo teto em renda. O dinheiro de Os Dez Mandamentos, afinal, cai nos bolsos do distribuidor e co-produtor, a Paris Filmes, mas também alimenta os cofres da própria Record. Parte do dinheiro para inflar o fenômeno vem dos próprios fiéis. Em reportagem da Folha, uma vendedora do Cinemark do shopping Raposo Tavares contou, por exemplo, que não havia mais lugares para uma das últimas sessões de Os Dez Mandamentos: todos os assentos haviam sido comprados por um pastor, ao custo de R$ 4.185, mas só havia 15 pessoas na sala de 279 lugares. A mesma história basicamente foi repetida em outros cinemas que exibiam o filme. Um fenômeno às avessas. Um recorde sem mérito.

Mas um recorde, ainda assim. Sem o incentivo anabolizado de grupos e pessoas ligadas à Universal (o que a igreja nega com veemência desde a estreia do filme), entretanto, é possível especular que Os Dez Mandamentos ainda seria um sucesso. Filmes religiosos geralmente têm uma boa carreira no Brasil, já que religião é assunto de igual interesse e polarização. Maria, Mãe do Filho de Deus (que teve um empurrão do Padre Marcelo Rossi) foi sucesso em 2003. Nosso Lar, de 2010 também triunfou nas bilheterias por mérito próprio.

Nos Estados Unidos, como lembrado na própria matéria da Folha, o que conta para o sucesso de um filme são os dólares arrecadados na boca do caixa – ninguém está muito preocupado se as salas estavam cheias ou não. No Brasil, os bilhetes vendidos ainda são convertidos em números absolutos de pessoas na plateia. Mas é impossível afirmar quanta gente estava de fato no cinema, neste ou em qualquer outro filme. Talvez eu devesse ter ido ao tal programa da Record. Talvez fosse bacana levantar essa discussão ao vivo. Talvez eles cortassem de imediato para os comerciais e eu fosse convidado polidamente a me retirar. Ao menos, porém, eu teria a chance de dizer que ao menos um ingresso foi comprado na bilheteria por alguém que de fato foi ao cinema para assistir ao filme: eu mesmo.

 

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.