Aventura juvenil O Escaravelho do Diabo mutila o livro original
O Escaravelho do Diabo dispara em muito marmanjo e madame uma fagulha imediata de nostalgia. A trama de mistério se popularizou ao inaugurar a série Vaga-Lume, em 1972, disparando em toda uma geração o gosto pela leitura leve, ligeira e empolgante. A adaptação para o cinema de Carlo Milani seria o gatilho para que a série, composta por títulos pop que trafegavam entre ficção científica e suspense, passando por mistério, fantasia e ação, pudesse dar novo variedade à nossa cinematografia tão cinza. Uma idéia necessária.
Pena que o filme seja tão ruim. Embora bem produzido, O Escaravelho nunca sabe o que quer ser. Ora é uma aventura infanto-juvenil, ora se propõe a ser uma trama sobre um serial killer. Às vezes escorrega em sua extrema ingenuidade, logo depois encontrando refúgio em uma cena de extrema violência. É compreensível a vontade de Milani em abraçar o mundo ao colocar as mãos em um material tão enxuto e tão bacana, mas a falta de uma visão clara sobre o que o filme pode ser arrasta todo o conjunto para baixo, transformando a aventura em uma grande oportunidade perdida.
Não ajuda o fato de O Escaravelho do Diabo, o livro, não ter envelhecido tão bem, o que abre espaço para uma contemporização da trama. Publicado em capítulos na revista O Cruzeiro em 1953 pela escritora Lúcia Machado de Almeida, o livro traz a investigação de uma série de assassinatos cometidos em uma cidade do interior, as vítimas sendo todas ruivas. Descobrir a identidade do matador compulsivo torna-se obsessão de Alberto, estudante de medicina e irmão da primeira vítima, Hugo. Embora alguns elementos soem extremamente datados, existe no texto de Lúcia Machado um esqueleto para confeccionar um projeto com ecos de Seven e O Silêncio dos Inocentes. O potencial para criar um thriller de primeira com tintas tupiniquins.
Por isso é estranha a decisão em transformar Alberto de um jovem adulto em uma criança que mal entrou na adolescência. De cara, os responsáveis pela adaptação deixam claro que todo a carga dramática e possibilidades estéticas de O Escaravelho do Diabo serão jogadas para o escanteio. Mesmo bem defendido pelo ator Thiago Rosseti, que tem 13 anos, o protagonista não convence como um detetive mirim, capaz de encaixar as peças dos assassinatos com uma facilidade impressionante. O roteiro tem pressa em jogar luz sobre o mistério da morte dos ruivos e sacrifica construção de personagens, substituindo coerência por coincidências. Uma das grandes sacadas do livro original é manter o mistério sobre a identidade do matador, mesmo depois que a história pareça resolvida. No filme, porém, fica logo claro que ele é um desequilibrado que vive isolado e deve ter assistido a Dragão Vermelho um pouco demais.
É terrível julgar um filme pelo que ele poderia ter sido, e não pelo que de fato ele se tornou. Mas quando o que está na mesa é a adaptação de uma obra tão notória, é impossível não coçar a cabeça. Principalmente quando nos perguntamos para quem exatamente se destina O Escaravelho do Diabo. Os fãs do livro, uma geração que já encosta nos 40, podem se decepcionar com as liberdades tomadas na trama original, uma modernização que despenca a faixa etária de seu público-alvo. Por outro lado, "série Vaga-Lume" não quer dizer muita coisa para a geração pós-Harry Potter, eliminando de imediato uma conexão com a memória afetiva. Será, no mínimo, curioso acompanhar sua evolução nas bilheterias.
No frigir dos ovos, O Escaravelho do Diabo é um thriller bipolar, que usa elementos que conversam com o público mais jovem (tablets, internet, conectividade) em um ambiente cuja ingenuidade não parece comportar. Personagens surgem sem muita explicação, como a cantora pop que entra em cena para gravar um vídeo musical sem absolutamente nenhum contexto de quem, como ou por que, ou o suspeito do primeiro crime, preso e solto em seguida sem cumprir a menor função dramática. Ao menos é um filme curtinho (mais ou menos uma hora e meia) com um elenco simpático e esforçado, que abraça a trama mesmo quando ela deixa de fazer sentido. A série Vaga-Lume tem uma dezena de outros títulos que podem render filmes bacanas. Que este O Escaravelho do Diabo fique como uma lição do que não deve ser feito ao mexer no baú da memória.
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