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Morre em silêncio, aos 60, o Video Cassete; hora de rebobinar sua história

Roberto Sadovski

22/07/2016 20h15

vhs

Morreu o VCR. Originalmente Video Cassete Recorder, ou simplesmente Video Cassete para os mais chegados, ele deixa uma legião de órfãos e um legado que será sentido por décadas e décadas. Sua morte foi anunciada pela empresa japonesa Funai Corporation, a última do mundo que ainda fabricava o aparelho. "Não conseguimos mais as partes para sua fabricação", disse um porta-voz da empresa. O Video Cassete resistiu bravamente, morreu em silêncio e deixa um rastro de histórias. A sua própria teve início em 1956, quando a empresa de eletrônicos Ampex revelou ao mundo o aparelho capaz de reproduzir vídeo em uma fita gravada previamente. O preço proibitivo – 50 mil dólares – fez com que a brincadeira ficasse restrita a redes de TV e suas retransmissoras nos Estados Unidos. A Toshiba mudou o formato das fitas em 1959, usando dois rolos rebobináveis, abrindo espaço para experiências da Phillips e da Sony com a nova tecnologia.

O primeiro VCR doméstico foi o britânico Telcan, de 1963, que ná época era vendido para endinheirados por cerca de 5 mil reais em valores atualizados. Quatro anos depois, várias empresas colocavam seus VCRs à disposição do público. Mas a novidade só se popularizou a valer a partir de 1972, quando a Phillips batizou o aparelho propriamente de Video Cassete Recorder. Como todo aparelho da década, ele tinha acabamento em metal escovado e madeira. Classudo. O mercado abraçou a mania em 1975, quando seis empresas (RCA, JVC, Ampex, Panasonic – ou Matsushita Electric -, Sony e Toshiba) passaram a disputar o coração do consumidor. Dois formatos travaram uma guerra pela preferência do público, cmo o VHS (Video Home System) da JVC esmagando o crânio do Betamax, desenvolvido pela Sony. Na década seguinte, a indústria do cinema passou a se adequar ao formato doméstico, e foi aí que a brincadeira ficou mais divertida.

Até então, assistir a um filme era possível de duas formas. Primeiro, quando ele chegava ao cinema. Depois, quando era exibido na TV. Rever? Só em reprises. O Video Cassete mudou tudo. Ao fim de 1984, cerca de 15 milhões de casar americanas tinham um VCR, e uma geração inteira passou a ser educada em filmes até então impossíveis de assistir. Os grandes estúdios passaram a organizar suas divisões para o mercado de entretenimento doméstico, e a renda dos filmes terminava muitas vezes anabolizada com a receita advindas das fitas de vídeo.

É aí que outro mercado foi aberto. Apesar de ser possível montar sua própria cinemateca (ou videoteca), o mais lógico era não ser dono do filme, e sim alugar de acordo com a conveniência do freguês. Assim nasceram as videolocadoras, com a americana Blockbuster sendo o modelo imitado em todo o mundo: alugue quantos filmes quiser, aproveite as promoções, rebobine ante sde devolver e seja feliz. Com a possibilidade de distribuir filmes para o consumidor final sem ter de passar pelo crivo dos exibidores – e pela peneira causada pela própria limitação de filmes possíveis em cartaz -, muitas produtoras passaram a criar filmes para o mercado doméstico, sem ter de encarar uma exibição em cinema antes.

É impossível mensurar quantos filmes, astros, diretores, produtores e profissionais foram formados sem a preocupação das receitas do cinema. Com filmes mais baratos, geralmente de ação, terror ou ficção científica, as produções "direto para vídeo" não só democratizaram a educação cinematográfica, como também serviram de porta de entrada para clássicos absolutos e cinematografias de países obscuros. Era mais fácil, então, assistir a um filme novo em folha e descobrir as referências de seus realizadores – tudo pelo preço de duas diárias com promoção para o fim de semana.

No Brasil, o Video Cassete começou seu reinado em meados de 1985, com os filmes lançados oficialmente competindo com as fitas "alternativas" – nome bonito para os cassetes piratas que abarrotavam o mercado. A contravenção, entretanto, foi uma bênção, já que forçou os distribuidores a lançar um grande volume de filmes "selados" para não dar espaço aos piratas. Assim, a cada mês as locadoras ganhavam não só uma fornada de lançamentos, como também uma oferta de clássicos que equilibrava a balança.

O digníssimo VCR teve mais de uma década sem concorrentes, mas a tecnologia não para de avançar. Ele sobreviveu aos desajeitados Laserdisc e VCD, mas não resistiu à chegada do DVD em 1995. O disquinho tinha melhor definição, era fácil de armazenar e, quando alugado, não precisava ser rebobinado (!). Curiosamente, o VCR experimentou dez anos de paixão nas casas de entusiastas em todo o mundo, mas teve uma sobrevida de mais duas décadas, devido principalmente ao acervo pessoal gigantesco de muitos colecionadores. Alguns cinéfilos simplesmente se recusaram a trocar sua imensa coleção de VHS por seu equivalente em DVD – algumas vezes, embora raramente, um filme sequer ganhava versão digital. Um pecado.

Eis que chegamos em 2016 com a morte do VCR. O panorama do entretenimento doméstico deu saltos estratosféricos, com o DVD vivendo ainda menos que seu antecessor, e o blu ray (que venceu o HD-DVD pela nova "batalha dos formatos") nunca engatando a mesma paixão. E foi isso que conduziu a vida do VCR: paixão. Quem produzia e quem consumia suas fitas em VHS em seus Video Cassetes foi uma geração que lutou pelo direito de ver seus filmes em casa, com qualidade e com direito a repeteco. Pode ser difícil para um mundo que tem tudo ao alcance de um toque na tela do celular entender o quanto era importante ter o direito de assistir a Blade Runner e Uma Aventura na África e Rastros de Ódio e A Marca da Maldade. Mas o VCR representava essa liberdade cultural e, Quentin Tarantino que o diga, o acesso a um catálogo cinematográfico mais importante que mil escolas de cinema.

No fim, essa é a palavra que resume a morte do VCR: paixão. Quem viveu os anos 80 e 90 como apaixonado por cinema, certamente será tomado por lembranças e histórias e filmes, dos blockbusters aos mais obscuros, que ajudaram a formar caráter, a definir histórias e a criar um caminho para a vida. Filmes não mudam o mundo, claro: pessoas mudam. Mas filmes conseguem mudar as pessoas. Seja no cinema, na TV, em VHS, DVD, blu ray, streaming, transmitido direto para o córtex. É o mundo em constante transformação. Ah, os meus VHS sobreviventes são três: os Guerra nas Estrelas originais, fitas dos anos 80, bem antes das alterações digitais feitas por George Lucas. Esses, eu não me desfaço nunca!

5 FILMES (+ 1) EM VHS QUE MUDARAM MINHA VIDA

Blade Runner – O Caçador de Andróides

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Só fui ver a obra prima de Ridley Scott no cinema em uma viagem a São Francisco, já no século 21. Mas tinha o filme de cor, passo a passo, em minha mente.

O Império Contra-Ataca

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O primeiríssimo filme que aluguei, lá atrás, em 1985. Como meu Video Cassete tinha a codificação de cor zoada, assisti ao filme em casa com tudo verde.

O Exterminador do Futuro

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Vi o primeiro filme de James Cameron (sério que você conta Piranha 2?) em casa, toscamente, em uma fita "alternativa". Nada mais adequado para uma ficção científica decididamente B.

Top Secret!

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A estreia, de Val Kilmer. Mas não é o mais importante. O importante é ver a fórmula de Apertem os Cintos! O Piloto Sumiu, do trio Jim Abrahams, David Zucker e Jerry Zucker, refinada à perfeição.

Batman

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O primeiro filme de super-heróis da era moderna foi um fenômeno no cinema (eu vi mais de 50 vezes), e a versão em VHS deve ter ficado até impressa nas engrenagens de meu VCR.

Tudo da America Video

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Eles distribuiam no Brasil as produções da Cannon, entre outras podreiras. 'nuff said.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.