Quem precisa de polêmica quando se tem Sonia Braga?
Ao chegar no topo da escadaria que leva ao Palácio dos Festivais, durante a última edição de Cannes, o elenco de Aquarius ensaiou um protesto contra o governo interino no Brasil, com cartazes que denunciavam um golpe em curso no país: polêmica, confusão! Um dos membros da comissão que vai escolher o representante brasileiro para uma vaga ao Oscar de filme estrangeiro ano que vem expôs, em redes sociais, sua posição política radicalmente diferente à do diretor de Aquarius: barulho, indignação! O filme recebe classificação indicativa com exibição liberada apenas para maiores de 18 anos pelo Ministério da Cultura: censura, revanchismo! Alguns diretores que concorrem à mesma vaga para o Oscar retiram seus filmes do páreo em solidariedade a Aquarius: absurdo, encrenca!
As últimas semanas foram bombardeadas com notícias relacionadas ao segundo longa do pernambucano Kleber Mendonça Filho. Do lado de cá, o público parece se dividir em quem apoia a obra e todos com ela envolvidos – seja com sintonia ideológica e/ou partidária, seja por simpatia a uma causa –, e quem nela enxerga o tipo de vilão que, vai saber o motivo, demonizou as leis de incentivo à cultura no país. Falem bem, falem mal, falem pra caramba: Aquarius se tornou o lançamento mais comentado dos últimos meses. Difícil lembrar que, em meio à celeuma, existe de fato um filme. Um belo filme, que parece sufocado ante a gritaria dos prós, dos contras e de quem adora jogar lenha na fogueira. Mas este drama de alma pernambucana não precisava de nada disso. Em primeiríssimo lugar, ele tem Sonia Braga.
Vamos então dar um passo para trás, esquecer o burburinho e a politicagem completamente fora de lugar (de todos os lados) e nos concentrar no que realmente interessa aqui: o filme. Aquarius não é um filme político, ao menos não na tradição da obra de Costa-Gavras, Ken Loach, Pontecorvo ou Jim Sheridan. E nem precisa. Mendonça é um cineasta com uma visão bem definida sobre luta de classes, herança social e o momento político, presente e passado, que permeia cada aspecto do Brasil. É claro que, quando ele se dispõe a contar uma história, essa visão será traduzida em palavras, imagem e som, uma tapeçaria que dificilmente fugiria de um posicionamento firme. Em seu primeiro longa, o ruidoso e superestimado O Som ao Redor, essa visão se perdia numa cacofonia que, embora proposital, era estridente e nunca deixava clara nem a estrutura, nem os protagonistas, nem a história que ele queria contar. Era uma tese que nunca se traduziu em um filme completo.
Aquarius, felizmente, é um animal com mais fôlego. Kleber usou a mesma temática – o abismo entre as classes, o momento em que elas se chocam, a reverberação que ecoa – em uma trama mais enxuta e mais vigorosa. Como O Som ao Redor, é um filme mergulhado na nostalgia, com o passado informando o presente e apontando o futuro; ao contrário de O Som ao Redor, a jornada não é vista com fúria, e sim com ternura. No centro está Clara, ex-jornalista, escritora e crítica musical que vive sua aposentadoria no mesmo edifício, na praia de Boa Viagem, no Recife, há mais de três décadas. Em paredes forradas de discos, livros e história, ela enxerga seu canto não apenas como um teto, mas como parte do pilar que compoe sua própria existência. Mas o futuro bate à porta, os proprietários do prédio lhe fazem propostas para vender seu apartamento e ela, como última moradora, é o entrave para a chegada da modernização. É nesse combate que jaz o conflito central de Aquarius.
Claro que Kleber Mendonça não tem interesse em fazer um arremedo de Rent!, não quer simplesmente colocar em cena uma luta maniqueísta de Davi e Golias. E nem poderia. Completamente apaixonado por Clara, o diretor e roteirista não só criou uma das personagens mais completas e complexas do cinema brasileiro contemporâneo, como tomou sua melhor decisão ao deixá-la nas mãos de Sonia Braga. A atriz, por sua vez, abraçou a causa e entregou uma performance que não só eleva o filme, mas também cria um patamar altíssimo a ser seguido de perto pelo elenco. Clara é uma criatura de detalhes, e é nos detalhes que habita a força narrativa de Aquarius. Dividido em três atos distintos, informados por flashbacks e uma economia narrativa que atesta a maturidade do diretor, o filme assume uma posição mas não deixa de apresentar um panorama maior. Existe a real preocupação dos filhos de Clara com o futuro da mãe, habitando o que é referido pela personagem de Maeve Jinkings como um "edifício-fantasma". Já os donos da construtura, representados pelo engenheiro-e-playboy Diego (interpretado com canalhice suave pelo ótimo Humberto Carrão), podem ser insensíveis com sua história, mas trazem argumentos sólidos para desalojar Clara (ela pode ir para um lugar mais seguro, sua "teimosia" causa um revés financeiros para dúzias de outras famílias, trabalhadores e herdeiros).
Não há soluções fáceis em Aquarius – assim como não há soluções fáceis na vida. E o que se desenrola em longos 142 minutos (não seria nenhum pecado enxugar um naco dessa metragem) é um recorte, com a trama principal emoldurando um retrato sólido do que é viver em uma metrópole brasileira no novo século, em que compaixão e cortesia são substituidos por dinheiro e ignorância. Em que uma mulher na terceira idade (a melhor idade?), absolutamente capaz de ditar os rumos de seu próprio destino, é vista como uma "senhora caprichosa", com poucos enxergando o tamanho de sua lucidez. Em que pessoas de verdade vivem dramas de verdade, envolvendo família (um momento com Clara e seus três filhos é o pedaço mais emocionante de cinema feito no Brasil recente), mágoa, relacionamentos, patrões, empregados, história, desejo e sexo – seria uma brevíssima suruba o motivo da moralista restrição para menores de 18 anos?
Ainda assim, Aquarius não junta-se à boa parte do cinema autoral brasileiro e seus filmes herméticos, cuja compreensão depende de manual e bula. Sua narrativa é clara, sua história é linear e seus conflitos informam a evolução dos personagens em vez de atrapalhar. Mesmo quando a trama parece emperrar, lá por uma hora e meia de história, Mendonça recupera o equilíbrio e entrega uma conclusão forte, abrupta e absolutamente condizente com a protagonista desenhada até então. Com Sonia Braga em total domínio de seu ofício como atriz, o filme encontra sua humanidade e sua força. É a melhor colaboração intérprete/diretor vista no cinema brasileiro desde que Walter Salles colocou Fernanda Montenegro na estrada em Central do Brasil. Esqueça, portanto, a politicagem tola, o ruído dos bastidores, a turma a favor e o pessoal contra: esqueça todo o som ao redor. Aquarius está bem acima disso. E, como cinema, ele merece a chance de brilhar sozinho.
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