Topo

Animações como filmes live action são bom negócio ou falência criativa?

Roberto Sadovski

17/10/2016 22h32

mogli

Quando saí da sessão da ótima releitura de Mogli, o Menino Lobo, de Jon Favreau, duas coisas não saiam da cabeça. A primeira: como eram fantásticos todos aqueles animais digitais zanzando por uma selva igualmente gerada em computador. A segunda: como seria legal ver O Rei Leão "modernizado" usando a mesma técnica. Aparentemente eu, a torcida do Flamengo e um punhado de executivos da Disney pensaram a mesma coisa: um dos próximos projetos de Favreau é justamente… O Rei Leão! A ser feito com a mesma técnica ultrarealista que ele usou em sua versão do clássico de Rudyard Kipling. Não me atrevo a chamar de "versão" live action porque, se Mogli ainda trazia Neel Sethi como o Menino Lobo, a história shakespereana de Simba pede só animais antropomorfizados. É um live action em green screen, é animação de ponta, é "Hakuna Matata" para a geração que não está a fim de animação em 2D. E é também uma verdadeira licença para imprimir dinheiro.

Justamente aí está a raiz do problema. Há alguns anos, quando se preparava para lançar Zodíaco, David Fincher me recebeu para uma longa conversa sobre cinema, legado e o estado das coisas. Um dos aspectos de filme como produto que mais o irritava era justamente a canibalização de obras para o lucro fácil. "Eu saio do supermercado e lá, nas gôndolas do caixa, vejo Cinderela 2, Aladin 3, absurdos enfileirados", esbravejou. "Como é que a própria Disney pisa em sua história transformando seus próprios clássicos, filmes que construiram o estúdio, em algo para consumo fácil na saída do supermercado?" Exageros à parte, Fincher tinha um ponto. Se construir um filme exige esforço cirativo de uma equipe de centenas, empurrar uma continuação (ou duas, ou várias) a toque de caixa não seria apenas um movimento para aumentar o fluxo de caixa? Qual seria, aí, o papel de um artista? E, numa divagação mais filosófica, onde fica a "alma" de uma obra quando ela existe unicamente para gerar uma grana?

101-Dalmatians

Glenn Close como Cruela em 101 Dálmatas

A linha entre arte e comércio é tênue – sempre foi. A diferença é que os artistas do mundo moderno não podem mais depender de mecenas que banquem sua vida para que eles façam o que fazem melhor: criar. Então é claro que um artista, quando cria para uma grande empresa, não pode esperar que seu trabalho também não seja visto como produto. As engrenagens, afinal, precisam girar. A Disney, por sua vez, está numa posição confortável. O estúdio não só abraça a Pixar, a Marvel e a LucasFilm, como também possui um catálogo interminável a ser minado. Com um pulo do gato: em vez de investir (somente) em continuações para ser vendidas com o pacote de salsichas e o six-pack de cerveja na saida do supermercado, os donos do Mickey miram agora com foco de laser em traduzir seus desenhos mais adorados em filmes com gente de verdade (ou, no caso de Mogli e/ou O Rei Leão, "gente de verdade"). Está funcionando que é uma beleza, e não deve parar tão cedo.

Nem é uma prática nova, a bem verdade. Foi em 1996 – ou seja, duas décadas atrás – que Glenn Close vestiu o casaco de Cruella De Vil (ou Malvina Cruela) em 101 Dálmatas, que materializou o fofo A Guerra dos Dálmatas (sim, eu sou velho, me deixa) em filme nas mãos de Stephen Herek. Tinha roteiro de John Hughes, Jeff Daniels e Hugh Laurie no elenco e ainda gerou uma continuação (fraquinha) em 2000. Mais importante, faturou 320 milhões de dólares nas bilheterias. Hoje seria uma soma fabulosa; vinte anos atrás foi um estouro! Ainda assim, a Disney preferiu naquele momento não focar na transformação de animações de seu catálogo em filmes live action. Na década seguinte o investimento foi em adaptar desenhos animados e séries de TV (George, O Rei da Floresta, Meu Marciano Favorito), apostar em remakes de filmes com décadas de idade (Poderoso Joe, A Montanha Enfeitiçada) e encher o bolso com um tiro no escuro que acertou no alvo: Piratas do Caribe.

IMG_1312

Aladin, Mulan, Peter Pan e O Rei Leão, breve, e de novo, nos cinemas…

Em 2010, porém, Alice no País das Maravilhas, com a dupla Tim Burton e Johnny Depp, surfou na onda do 3D iniciada meses antes por Avatar e bateu em 1 bilhão de dólares nas bilheterias. Mesmo não sendo uma versão passo a passo do filme de 1951, foi o sinal verde para diretores, aí sim, exercitarem seus músculos criativos na caixinha de brinquedos do estúdio. Na esteira chegaram aos cinemas o bizarro Aprendiz de Feiticeiro (de 2010, com Nicolas Cage, adaptando livremente um segmento do clássico Fantasia); Malévola (em que a über vilã de A Bela Adormecida virou anti heroína na pele de Angelina Jolie em 2014); Cinderela (em que Kenneth Branagh basicamente traduzou o desenho sem mexer muito na trama, isso em 2015); e, finalmente, Mogli no começo deste ano. Ainda dá para colocar no bolo o super simpático Meu Amigo, O Dragão, em que Robert Redford e Bryce Dallas Howard contracenam com um dragão peludo e digital, atualizando o musical de 1977 que usava uma criatura de desenho animado com atores de verdade.

A verdade é que modernizar o passado é uma necessidade comercial, além de ser uma tendência irrefreável. Embora o argumento de David Fincher sobre canibalizar sua história seja sólido, empresas do tamanho da Disney (e qualquer outra com um legado tão rico em seu catálogo, como a Universal e seus monstros clássicos ou até o mundo de Harry Potter na Warner) não podem parar de minar seus produtos – seja para se manter no jogo, seja para mantê-los sempre como novidade a cada nova geração de cinéfilos. Para o bem ou para o mal, O Rei Leão de Jon Favreau está a caminho. Assim como A Bela e a Fera, já agendado para março de 2017, com Bill Condon na direção, Emma Watson como a Bela e um monte de móveis animados com vozes de famosos. E Aladin, com roteiro de John August e direção de Guy Ricthie. E outro Peter Pan, com direção do mesmo David Lowery que fez Meu Amigo, O Dragão. E Dumbo, que pode ter a mão de Tim Burton. E Mulan, já agendado para 2 de novembro de 2018 (!). E A Espada Era a Lei, com roteiro de Brian Cogman, um dos cérebros por trás de Game of Thrones. Se a engrenagem vai ou não emperrar, depende do fluxo de dólares que vai tilintar na caixa da Disney. A gente vai saber mesmo que essa fonte secou quando anunciarem uma versão live action de Nem Que a Vaca Tussa dirigida por Zack Snyder…

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.