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Parece sobre aliens, mas A Chegada é sobre um mundo que se recusa a ouvir

Roberto Sadovski

24/11/2016 02h42

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Bryan Singer disse uma vez que a ficção científica era o gênero cinematográfico mais completo. "É o único que nos permite explorar, sob qualquer aspecto, a condição humana", explicou. A Chegada materializa, de certa forma, as palavras de Singer. Em sua superfície é mais um filme sobre uma invasão alienígena – mesmo que, desta vez, os visitantes não cheguem reduzindo cidades inteiras a pó em um espetáculo digital. Nas mãos do canadense Denis Villeneuve, porém, o filme surge como um drama elegante sobre nossa dificuldade em nos comunicar, e como isso pode levar a humanidade à sua ruína. Esqueça, portanto, conceitos fáceis sobre bem e mal: A Chegada habita uma gigantesca Babel, em que não existe inimigos a não ser nós mesmos.

Quem nos conduz nesta jornada é a linguista Louise Banks (Amy Adams), convocada pelos militares para tentar estabelecer uma comunicação com visitantes de outro mundo. Seu trabalho é tentar entender o que querem os tripulantes de uma gigantesca estrutura que pousou em Montana, nos EUA – espelhando outros onze monolitos que também chegaram, espalhados pelo globo. Ao lado do físico Ian Donnelly (Jeremy Renner), ela começa a desenhar uma forma de comunicação com os aliens, chamados heptapods por se manter em sete tentáculos. Sua comunicação não é verbal, mas visual, e desvendar seu propósito antes que o representante de algum outro país decida escalar o conflito com o dedo no gatilho é essencial para conseguir respostas – e, talvez, impedir uma tragédia.

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Os visitantes chegam à Terra

Seria fácil transformar A Chegada numa espécie de corrida contra o tempo, em que o intrépido casal de cientistas precisa bater o relógio para nos salvar da aniquilação. Mas este não é o interesse de Villeneuve. Adaptando o conto "Story of Your Life", que deu ao escritor Ted Chiang meia dúzia de prêmios literários na virada do século, o diretor canadense expande sua essência, ao lado do roteirista Eric Heisserer, de uma trama intimista para uma narrativa global. Compreender a língua dos alienígenas é o cerne de uma questão que revela a maleabilidade do tempo e também a dificuldade dos próprios seres humanos em estabelecer laços. Elegante, Villeneuve foge do que poderia ser mais um panfleto militar ianque e o transforma numa trama sobre integração, uma ficção científica cerebral e pacifista.

Para guiar a narrativa ele aposta em Amy Adams e seu olhar quase etéreo. No papel da Dra. Banks, ela percebe que o entendimento surge por meio de estudo, pesquisa e paciência. Ou seja, decifrar a linguagem dos heptapods – uma combinação não linear de símbolos, decifrada com o uso de princípios matemáticos lentamente compartilhados com os aliens. Sua mensagem carrega um segredo que eleva o filme a um patamar ainda mais cerebral e emotivo, e é fascinante observar não só o cuidado com que Villeneuve conduz a trama, revelando aos poucos seu verdadeiro propósito, como o trabalho delicado de Amy Adams ao construir sua personagem, que não se deixa levar pela testosterona do ambiente militar e mostra que, dentre todos envolvidos com a missão, ela é a única capaz de conduzí-la até o fim.

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Amy Adams aprende a ler com os heptapods

Fazer com que todo esse falatório científico, filosófico e não linear seja amarrado não só em um filme coerente, mas tenso e eletrizante, é o grande trunfo de Villeneuve. Desde que foi apresentado ao mundo com o drama Incêndios, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2011, o diretor de 49 anos vem se tornando um dos nomes mais interessantes a ser observado no cinemão. Ele encarou com a mesma desenvoltura um thriller contemporâneo (Os Suspeitos, de 2013) e uma adaptação de Saramago (O Homem Duplicado, lançado no mesmo ano), expandindo seu escopo com o drama sobre o combate ao tráfico de drogas na fronteira com o México, Sicario (2015). Embora abordem gêneros e tons completamente diferentes, em comum eles trazem um domínio claro narrativo e uma habilidade sem igual na condução de atores. No caso de Sicario e também de A Chegada, Villeneuve entrega a condução da narrativa a uma personagem feminina forte e complexa, que não se intimida em entrar num "mundo masculino".

Esse compromisso com o cinema contemporâneo, além da habilidade técnica em conduzir o espetáculo, é fruto de referências bem claras que o diretor expressa sem pudor. A Chegada é herdeiro óbvio das ficções científicas alegóricas dos anos 50, quando a única maneira de expressar o temor do meio artístico contra a "caçada aos comunistas" que apavorou a Guerra Fria era usar o gênero como avatar do mundo real. Mas o filme também não esconde o DNA de aventuras sobre visitantes de outros mundos populares nos anos 80, quando a escassez de recursos técnicos criava filmes mais intimistas e menos explosivos – o que, para o bem e para o mal, se tornou a produção do gênero depois de Independence Day. A Chegada, portanto, traz o melhor de vários mundos, uma mistura bem amarrada de espetáculo e reflexão, de blockbuster moderno com um cinema que tem de fato o que dizer. A continuação de Blade Runner, que estreia em outubro de 2017, está sendo dirigida neste momento por Denis Villeneuve. Não poderia estar em melhores mãos.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.