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Típico “filme do bem”, Lion é edificante, atrai talento... e deve sair da memória em menos de um ano

Roberto Sadovski

16/02/2017 00h32

Lion: Uma Jornada Para Casa é um filme muito bonito. Conta uma história real de superação e busca pela identidade, tão fantástica que é até difícil acreditar que aconteceu de verdade. Tem um elenco que varia de fofo a incrível, todos em ótima forma. De Nicole Kidman, recolocando a carreira no prumo, a Dev Patel, que surge como galã incontestável e a cara do cinema plural e multicultural que o planeta precisa. Tem o estreante Sunny Pawar, que faz o protagonista quando criança, tão adorável quanto talentoso. Lion é daquelas experiências para viver no cinema, com a sala cheia, de deixar a plateia com o coração iluminado ao acender as luzes. É, repito, um filme muito bonito.

Inevitavelmente, será difícil alguém lembrar dele em um ano. Como em todo fim de temporada, principalmente a das premiações que antecede o Oscar, uma fornada de produções, independentes ou com assinatura de uma major, deixa a pirotecnia de lado para se concentrar nas histórias mais humanas, mais extraordinárias. É o cinema mais "nobre", que não se concentra tanto no espetáculo, e sim na narrativa. É quando surgem os filmes mais especiais e inesquecíveis, os que elevam a arte de fazer filmes a outro patamar. É daí que saem filmes como La La Land, Birdman, Cisne Negro, Onde os Fracos Não Tem Vez, Sangue Negro… É quando o cinema aplaudido pela crítica e coroado pelo público se encontra e deixa sua marca na história.

Talentoso e charmoso, Dev Patel é o galã que Hollywood precisa

Lion não está nesse meio. De forma alguma isso atesta contra sua qualidade – incontestável! –, só aponta para um aspecto do estado das coisas. Nem todo filme "nasceu" para ser clássico ou cult, nem todo filme surge para cravar suas garras no espírito do tempo. Às vezes é apenas um recorte, um momento, um trabalho que será aplaudido e reconhecido, que entra na "corrida" das premiações de cabeça erguida e geralmente morde um ou dois prêmios, e que desaparece calmamente pela noite, com a certeza de sua missão estar cumprida. São filmes como Brooklyn (aquele da imigrante irlandesa na Nova York do começo do século 20), como Livre (aquele em que Reese Witherspoon faz uma trilha e se redescobre como ser humano), como Uma Vida Iluminada (aquele em que Elijah Wood vai para a Rússia e encontra gente estranha), como À Procura da Felicidade (aquele com Will Smith pobre ficando rico em Wall Street)… até como Estrelas Além do Tempo, que também está em cartaz por aqui e tem um pé na zona de conforto do Oscar.

O importante é que histórias como a de Lion continuem a ser contadas, e este sopro de reconhecimento ajuda a investidores independentes abrir a carteira para produzir o próximo. É a maneira de histórias extraordinárias como a de Saroo Brierley continuem inspirando plateias ao redor do mundo. O filme é baseado em sua biografia, Uma Longa Jornada Para Casa, que começa quando ele, ainda uma criança, acompanha seu irmão mais velho, Guddu, em busca de trabalho noturno como parte da casta mais pobre da Índia. Esperando pelo irmão numa estação de trem, Saroo termina preso num vagão e desembarca dias depois em Calcutá, sem saber falar o dialeto local, sem ter o nome certo de sua vila natal e sem nenhuma maneira de voltar.

Saroo (Sunny Pawar) antes de se perder de seu irmão, Guddu (Abhishek Bharate)

Essa primeira parte é dominada pelo pequeno Sunny Pawar, que alcança um equilíbrio perfeito entre fragilidade e resiliência. Depois de uma série de provações, ele termina adotado por um casal australiano (Nicole Kidman e David Wenham) e recomeça sua vida. Duas décadas depois, Saroo (agora interpretado por Dev Patel) está em Melbourne estudando hotelaria, relacionando-se com uma estudante americana (Rooney Mara), mas a lembrança de sua mãe biológica e de seu irmão, somado ao desespero que ele acredita que seu desaparecimento infligira a eles, faz com que descobrir suas origens torne-se uma obsessão.

Daí, o diretor Garth Davis (um australiano que iniciou sua carreira na TV, fazendo aqui sua estreia em um longa) cumpre todas as etapas do "drama edificante", até um clímax emocionante. Nada disso, por sinal, é demérito, já que Davis não sucumbe em nenhum momento à sacarina e seu elenco abraça a emoção da história de forma discreta. O Oscar reconheceu os méritos de Lion e o indicou a seis estatuetas: melhor filme, ator e atriz coadjuvante (para Dev Patel e Nicole Kidman, mesmo eles sendo protagonistas), fotografia, trilha sonora e roteiro adaptado. Como todo filme "do bem", merece os aplausos e, vá lá, será lembrado, mesmo em pequena escala, por quem busca emoção genuína. Não é pouco.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.