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O que é mais importante em uma adaptação de quadrinhos para o cinema, agradar aos fãs ou contar uma boa história?

Roberto Sadovski

01/05/2017 13h58

Em um momento de Guardiões da Galáxia Vol. 2, parte da equipe original dos quadrinhos é reunida sob a liderança de Sylvester Stallone. Se você nunca abriu um gibi dos Guardiões antigos na vida, dificilmente vai entender a meia dúzia de malucos aplaudindo e gritando "vencemos!" dentro do cinema. Mas filmes baseados em gibis tem dessas coisas, momentos que apelam justamente para os nerds raiz: o nome disso é fan service – literalmente "serviço para fãs", os momentos em que os cineastas afagam os mais entusiasmados, entregando nacos de história/arte/cenas/diálogos que, basicamente, só eles entendem (e por "eles", saiba, quero dizer "eu também"). Por vezes, entretanto, estes easter eggs espertos mais atrapalham que ajudam a narrativa. Afinal, o cinema é a mídia do diretor, mesmo que sua visão seja uma mera adaptação de histórias numa HQ, e não uma tradução literal.  Seria, portanto, o fan service mesmo necessário? Bom, sim e não.

Existe uma regra silenciosa para filmes baseados em heróis de gibis: quando na dúvida, volte ao Superman de Richard Donner. Poucas vezes uma aventura ancorada por um sujeito de roupa colante colorida pareceu tão… real! Com Christopher Reeve no papel do Homem de Aço, o filme de Donner traz todos os elementos que fazem o Superman tão reconhecível, mas em nenhum momento existe uma preocupação em mimetizar uma cena, um diálogo, um momento dos quadrinhos. Mais ainda: o Azulão é, aqui, o único herói do pedaço. Neste "universo", que se estendeu por quatro filmes, o único "super" é o Superman. Não existe Gotham City ou Ilha Paraíso ou uma coleção de megavilões dos quadrinhos. Não existe distrações para desviar o foco do que realmente importa: um ótimo roteiro, guiando um diretor no auge de suas habilidades, em um filme não menos que perfeito. Qual seria o propósito de coalhar com pistas sobre quadrinhos além de agradar uma fatia proporcionalmente pequena da plateia? Se o filme não precisa, então o fan service é só perfumaria.

Batman vs Superman: fan service e mais nada

Zack Snyder deixou o "livro de regras" em casa quando filmou Batman vs Superman: A Origem da Justiça. A aventura lançada em 2016 é fan service de ponta a ponta: o visual canibalizado de gibis famosos, imagens praticamente retiradas de painéis dos quadrinhos, um milhão de referências a um universo DC mais vasto (o que começou em O Homem de Aço, do próprio Snyder). A certo momento, o filme vira um gigantesco "Onde Está Wally?", com os nerds mais agudos mais preocupados em caçar citações obscuras e pistas de produções futuras do que em aproveitar a história que está sendo contada bem ali à sua frente (veja que uso "história" e "bem contada" de maneira muito genérica quando o assunto é BvS, mas tudo bem). Ah, Snyder matou Jimmy Olsen, melhor amigo do Superman nos gibis, nos primeiros minutos do longa. Não por ter qualquer importância para a trama, mas por ele achar que seria "divertido". Tô me acabando de rir aqui….

A concorrência, apesar de levemente mais discreta, não fica livre desse exagero em entupir seus filmes com nacos de seu próprio umbigo. Os fãs, mal acostumados, deixam-se levar por certos absurdos e terminam saboreando menos o filme. Em Homem-Aranha 2, por exemplo, surgiu uma teoria estúpida de que o astronauta John Jameson, papel de Daniel Gillies, seria secretamente o simbionte Venom – a "prova" seria um salto do pier para um barco ao fim do filme. Sério. E ainda tem gente que jura ter visto Thomas Jane, paramentado como o Justiceiro, na cena logo após Mary Jane (Kirsten Dunst) abandonar o próprio John no altar. O que esse pessoal colocou na comida?

Homem-Aranha 2: fan service do bem

O próprio Homem-Aranha 2, porém, mostra exatamente como um cineasta esperto sabe usar os fãs a seu favor. Sam Raimi teve total liberdade ao dirigir a segunda aventura do Cabeça de Teia no cinema e usou como base uma trama do gibi The Amazing Spider-Man #50, quando Peter Parker abandona a identidade do herói por achar que ele faz mais mal do que bem ao colocar a fantasia colorida. Raimi, fã roxo de gibis, reproduziu a capa da HQ em seu filme, com Peter deixando seu traje de super-herói na lata do lixo. A platéia roots foi à loucura, os não-fãs ganharam um momento genuinamente emocionante, Raimi mostrou a importância de usar referências e nunca esquecer suas raízes e todos saíram no lucro. Fan service à serviço da narrativa? Não só pode como deve!

Um diretor, por sinal nem precisa ter simpatia por HQs para usar referências de forma esperta. Bryan Singer, em X-Men 2, colocou informações de outros mutantes em arquivos de computador e chapas de negativos espalhadas por um laboratório, um a-ha! para os fãs que em nada atrapalha a trama. Christopher Nolan, que não dá muita trela para gibis mas é um baita contador de histórias, usou referências de quadrinhos como Batman Ano Um e O Longo Dia das Bruxas em seus Batman Begins e O Cavaleiro das Trevas. Até o filme que encerra sua trilogia, embora mais fraco que os antecessores, repete o painel em que Bane arrebenta a coluna do Homem-Morcego e usa, literalmente, um dos diálogos mais bacanas de Batman – O Cavaleiro das Trevas (o gibi de Frank Miller, claro): "Você tá… brecando?" "É, tô. A gente vai ver um show." Eu quis aplaudir de pé!

Christopher Nolan no set de Ressurge: a história sempre em primeiro lugar

O que nos traz de volta a Guardiões da Galáxia Vol. 2. James Gunn sabe agradar seu eleitorado. Com o sucesso acachapante do primeiro filme, porém, essa turma foi muito além dos fãs de gibis – ou mesmo de fãs da Marvel! Então o diretor criou uma aventura fácil de ser seguida, emocionante, divertida e bem amarrada. Ainda assim, não se furtou em encher cada polegada de celulóide de momentos, super discretos, que o fã com visão além do alcance com certeza vai pescar e se empolgar. É o melhor de todos os mundos. Mas Gunn, assim como os cineastas que sabem de fato criar filmes assim, entendem que fan service não é prioridade. É um tempero, uma purpurina para deixar o conjunto mais atraente. Em nenhum momento isso deve tomar a frente do roteiro. Em nenhum momento agradar aos fãs hardcore deve atropelar a prioridade que é contar uma boa história. No fim, isso é a única coisa que importa…

… mas essa imagem dos Vingadores que abre esse texto é lindona, vai!

Bônus round: Kurt Russell e Sylvester Stallone estão à serviço dos fãs em Guardiões da Galáxia Vol. 2…. mas essa foto é de Tango & Cash!

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.