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Terror psicológico? Crítica social? Humor negro? Saiba por que Corra! é, até agora, o melhor filme de 2017

Roberto Sadovski

04/05/2017 02h35

Antes de viajar para um fim de semana nos subúrbios, na casa dos pais da namorada, o fotógrafo Chris solta a bomba: "Eles sabem que eu sou negro?" É um detalhe sutil, mas aos poucos fará toda a diferença em Corra!, estreia espetacular do humorista Jordan Peele na direção. É um filme de terror. É também um comentário social incisivo, que fala abertamente sobre preconceito – velado ou não, dos personagens no filme ou de nós mesmos na plateia – sem nunca diretamente… falar abertamente sobre preconceito! O gênio do filme de Peele é emoldurar questões tão ácidas e contemporâneas em um gênero que, muitas vezes, mergulha no exagero e na fantasia. O mais sensacional? Corra! funciona em todos os níveis e de todas as maneiras. Poucas vezes um filme surge com tamanha clareza em sua proposta narrativa, tão envolvente em suas reviravoltas e tão eficiente ao entregar seus objetivos. É uma realização praticamente perfeita e, se tivermos sorte, o melhor exemplo dos bons filmes que o ano ainda pode entregar.

Boa parte de seu sucesso deve-se à performance irretocável de Daniel Kaluuya como Chris. O ator inglês de 28 anos, veterano da TV inglesa que ganhou destaque com a série Black Mirror, revela-se como o condutor perfeito para a trama. É por seus olhos que o filme desdobra suas camadas, em especial quando o alvo é o racismo – não o escancarado, grosseiro e ofensivo, mas o tipo que surge disfarçado de inveja cordial, de tapinhas nas costas atrelados a uma mágoa secular. Ao chegar na casa centenária dos pais de Rose Armitage (Allison Williams, da série Girls), sua namorada, ele encontra uma família esforçada em superar o aparente choque racial: são amistosos demais, receptivos demais. "Votaria em Obama para um terceiro mandato", diz o pai, Dean (Bradley Whitford), abraçando o clichê do "branco bacana". A coisa passa de exagerada a inconveniente quando a mãe, a psicóloga Missy (Catherine Keener), hipnotiza Chris à sua revelia para lhe "curar" da vontade de fumar: a sessão desperta traumas da juventude do fotógrafo, e a expressão de Kaluuya vai da incredulidade ao esfacelamento emocional em segundos de maneira brilhante.

(L to R) Missy (CATHERINE KEENER), Dean (BRADLEY WHITFORD), Rose (ALLISON WILLIAMS), Georgina (BETTY GABRIEL) and Chris (DANIEL KALUUYA) in Universal Pictures' "Get Out," a speculative thriller from Blumhouse (producers of "The Visit," "Insidious" series and "The Gift") and the mind of Jordan Peele. When a young African-American man visits his white girlfriend's family estate, he becomes ensnared in a more sinister real reason for the invitation.

Família feliz, família equilibrada, fam…. ok, as aparências enganam

O que começa incômodo e chega a inconveniente passa para o absurdo e o bizarro na figura do caseiro, Walter (Marcus Henderson), e da faxineira/cozinheira, Georgina (Betty Gabriel). Ambos são negros, comportando-se ora como se estivessem na época da escravidão, de olhar perdido e gestos cautelosos, ora de maneira socialmente constrangedora, o que fica evidente na linguagem estranhamente rebuscada e nas interações com Chris, que entende menos e menos o que, afinal, está acontecendo. A essa altura seu incômodo já transcendeu a tela e se torna a própria narrativa, já que é difícil permanecer impassível do lado de cá: todos temos um pouco dos Armitage; todos temos um pouco de Chris. Sua dificuldade em manter a normalidade com o clima peculiar vai para o espaço de vez quando seus anfitriões recebem uma dúzia de convidados (todos brancos, velhos, ricos e estranhos) para uma festa anual na propriedade. Entre os rostos alvos e inquisidores, ele avista um outro jovem negro, é recebido com ainda mais estranheza, tenta tirar sua foto… e Corra! troca o desconforto por uma tensão crescente, quase insuportável, que culmina em catarse – mas não da maneira como os filmes do gênero geralmente são conduzidos.

A partir daí, acredite, quanto menos se falar sobre a trama de Corra!, melhor. Basta dizer que a) você não imaginaria nem em uma centena de anos os desdobramentos a seguir, e b) você vai ficar incomodado, intrigado, assustado e desconfortavelmente satisfeito ao acender das luzes. Basta dizer que desde O Sexto Sentido não surge uma trama tão engenhosa e tão bem amarrada, e que uma segunda sessão (ou terceira, ou várias) surgirá como um filme completamente diferente, em que a plateia passa de observadora a cúmplice. A jogada de mestre empreendida por Peele (que trabalhou ora como ator, ora como roteirista e ora como produtor em séries diversas e geniais como MADtv, Obama e Key and Peele) é nunca desacelerar do comentário social – ele mesmo cunhou o termo "thriller social" para seu filme –, mas sem jamais subir em um púlpito ou transformar seu trabalho em discurso. O racismo (nosso e dos personagens) é integral como parte da engrenagem narrativa. Basta dizer que Corra! navega com tamanha habilidade pelos clichês do gênero que não seria impossível imaginar um protagonista caucasiano: talvez os caminhos da história fossem os mesmos, mas a carga emocional não chegaria aos pés, nem a tensão crescente, nem o impacto das reviravoltas do roteiro.

Writer/director/producer JORDAN PEELE on the set of Universal Pictures' "Get Out," a speculative thriller from Blumhouse (producers of "The Visit," "Insidious" series and "The Gift") and the mind of Peele. When a young African-American man visits his white girlfriend's family estate, he becomes ensnared in a more sinister real reason for the invitation.

Jordan Peele, à vontade do set de seu Corra!

Todos estes elementos, já potencialmente explosivos, chegaram num momento histórico peculiar: Peele começou a escrever Corra! quando Obama ainda esquentava a cadeira da presidência dos Estados Unidos. Mas o filme chegou aos cinemas com Donald Trump no poder. A "novela" da vida real terminou por acrescentar ainda mais camadas à proposta do diretor, já que os temas levantados por ele surgem em uma luz diferente quando uma parcela significativa da América mais caipira e preconceituosa e obtusa se sente empoderada em verbalizar ideias e conceitos medievais. Não é mero acaso que Corra! tenha se conectado com a sociedade americana de maneira tão incisiva: produzido ao custo de 4,5 milhões de dólares (em parte bancados pela produtora Blumhouse, que também colocou dinheiro em Fragmentado, de M. Night Shyamalan), o filme já faturou pouco mais de 170 milhões só nos Estados Unidos. Ideias originais ainda são um ótimo negócio. Quando essas ideias tocam em temas relevantes que a sociedade busca maneiras de expressar, o resultado é ouro puro. É uma mistura complexa que Jordan Peele conseguiu combinar à perfeição, um terror psicológico de forte crítica social e uma dose nervosa de humor negro. Corra! é o filme certo para o momento certo. E é, até segunda ordem, a experiência cinematográfica mais satisfatória e arrasadora do ano.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.