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A Última Caçada de Kraven: a HQ mais sombria e sensacional do Homem-Aranha completa 30 anos

Roberto Sadovski

05/07/2017 15h17

Três décadas atrás, o mundo das histórias em quadrinhos havia sido abalado com a chegada de suas sagas definitivas: Watchmen e Batman: O Cavaleiro das Trevas, ambas publicadas pela DC. De repente, os super-heróis, sempre otimistas e inabaláveis, eram confrontados com narrativas mais sombrias e maduras, um reflexo de uma mudança de geração entre artistas e também seu público leitor, cada vez mais sofisticado. As vendas responderam de forma positiva, os quadrinhos ganharam status mais legítimo como forma de arte "séria". E a Marvel não queria ficar para trás, bolando sua própria história neste molde. E ela surgiu com o protagonista mais inesperado: o Homem-Aranha.

A verdade é que A Última Caçada de Kraven, da dupla J.M. DeMatteis e Mike Zeck, tinha tudo para dar errado. Afinal, como colocar o herói mais solar e otimista da Marvel num contexto de trevas? A resposta não só se tornou uma das aventuras mais sensacionais do herói, como também abriu espaço para um novo molde na forma de contar histórias nos quadrinhos, um padrão que hoje é norma. Dividida em seis partes, a trama estendeu-se por dois meses pelos três títulos que o Aranha tinha na época (The Amazing Spider-Man, The Spectacular Spider-Man e Web of Spider-Man). Embora o plot pudesse ser resolvido de uma só tacada, a escolha por esticar a narrativa permitiu a DeMatteis uma profundidade maior na caracterização dos personagens, dando uma dimensão trágica e uma atmosfera tensa no que, em outras mãos, poderia ser mais uma briga de herói e vilão.

Peter e Mary Jane em momento meigo

Desta vez, a coisa não seria tão simples. Em 1987, o Aranha enfrentava algumas novas ameaças, deixando sua galeria de vilões clássica um pouco de lado. O Duende Macabro havia sido o centro de uma narrativa longa em seus títulos. O traje negro do herói era uma herança das Guerras Secretas de três anos antes, e havia sido revelado como um simbionte alienígena, então mantido em cativeiro por Reed Richards, líder do Quarteto Fantástico – aqui, Peter usava uma roupa negra normal. Kraven, o caçador, era na época um vilão de segunda categoria, que nunca representou ameaça maior ao herói. O trabalho de DeMatteis foi lhe adicionar camadas e motivações, que fizeram do personagem mais trágico e com um propósito real: matar o Aranha, tomar seu lugar e mostrar, em sua lógica ensandecida, que ele era seu superior.

Curiosamente, A Última Caçada de Kraven começou como uma minissérie do herói Magnum, que seria morto e enterrado por seu irmão. A proposta foi rejeitada pelo editor da Marvel à época, e DeMatteis retrabalhou seu conceito e o levou à DC, desta vez como uma história do Batman. A editora também disse não, alegando que o conceito era de certa forma parecido com o de um especial sendo produzido por Alan Moore e Brian Bolland, A Piada Mortal. O roteirista mais uma vez mexeu em suas ideias, substituindo o Coringa por Hugo Strange. A DC disse não de novo e ele voltou à Marvel, agora com o Homem-Aranha enfrentando um novo vilão, e recebeu sinal verde. Alguns ajustes foram feitos, como a adição de Kraven, um segundo vilão na forma do assassino Rattus (criado por DeMatteis e pelo desenhista Mike Zeck quando eles trabalharam juntos no título do Capitão América) e mais espaço para Mary Jane Watson, já que a história seria a primeira do Aranha depois de seu casamento com a modelo ruiva.

Apenas "uau"

O que ninguém esperava, nem muita gente dentro da própria Marvel, era o sucesso de uma história tão sombria protagonizada pelo Homem-Aranha. Mas é uma percepção equivocada. A Última Caçada de Kraven funciona tão bem justamente por ter o herói à frente. Na trama, Kraven embosca o Cabeça de Teia, lhe "mata" com um tiro, o enterra e toma seu lugar, usando o traje negro para caçar criminosos – e, principalmente, o assassino Rattus. Ele triunfa com violência e intensidade, mas nunca se torna o Aranha. O tema que DeMatteis explorou com sucesso foi justamente esse: o Homem-Aranha não é um sujeito com uma máscara, e sim Peter Parker usando um traje que esconde sua identidade, combatendo o crime por ter o poder para tal. Grandes poderes trazem grandes responsabilidades, como já sabemos. É uma escolha moral, e não uma transformação motivada pelo anonimato ou uma busca por adrenalina.

No meio tempo, Mike Zeck brilha ao desenhar uma história nada convencional do herói, mostrando sua condição mental nas semanas em que esteve "morto" – na verdade, drogado por Kraven e enterrado por duas semanas – até sua "ressurreição" e a opção não por vingança, mas por mais uma vez fazer a coisa certa. Zeck opta por uma narrativa clássica, em que desenvolvimento de personagens e cenas de ação surgem igualmente empolgantes. A resposta dos fãs foi imediata, e A Última Caçada de Kraven (título que a série só ganhou quando foi colecionada em edição encadernada) tornou-se referência para as aventuras do herói. Claro que outros roteiristas não foram tão felizes, e muitas histórias mais, digamos, intensas do personagem não tiveram o mesmo sucesso.

As capas originais da saga

A história de DeMatteis e Zeck foi, de certa forma, precursora das HQs sombrias e violentas que assolaram a década seguinte, em que o próprio Homem-Aranha ganhou um inimigo que espelhava o tom que os quadrinhos tomariam (o violento Venom) e uma história que espelhava o formato de A Última Caçada de Kraven, estendendo-se e entrelaçando seus vários títulos (a malfadada Saga do Clone). Mas nada chegou perto na intensidade e do poder narrativo de uma história que passou por tantas mutações e encontrou sua forma definitiva quase ao acaso e nas mãos do protagonista mais improvável. Trinta anos depois, ela ainda é o momento de maior impacto na carreira do herói. O que, no caso de um personagem tão rico como o Homem-Aranha, não é pouco.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.