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HQs e cinema ensinam como lidar com nazistas

Roberto Sadovski

22/08/2017 11h18

2017 me pegou de surpresa. Achei que, a essa altura, estaríamos dirigindo carros voadores, o cinema holográfico seria uma realidade e Neo-Tokyo estaria prestes a ser erguida na cratera flamejante da capital nipônica. Em vez disso, nazistas marcham em plena luz do dia, pregando ódio, intolerância e violência sob as asas de um presidente incapaz de agir. É um assunto delicado, claro, o modo de abordar o ressurgimento de um movimento tão nefasto em pleno século 21 – a suposta era do diálogo, da empatia, da total liberdade de expressão. Embora o discurso assustador dos tais supremacistas brancos seja obviamente condenável, algumas vozes ainda apontam o caminho do entendimento para lidar com tais extremistas. "Vamos mostrar que a paz e a exposição de ideias é a melhor maneira de agir", diriam alguns. Bom, em março de 1941, Um novo herói mostrava exatamente como lidar com nazistas:

Pow!

Os Estados Unidos ainda não haviam entrado na Segunda Guerra Mundial (isso só aconteceria após o ataque a Pearl Harbor em dezembro do mesmo ano), mas os artistas de histórias em quadrinhos já entendiam a dimensão da ameaça nazista. Entre eles estava Jack Kirby, o desenhista que basicamente criou a linguagem dos gibis de super-heróis como conhecemos hoje. Kirby, ao lado do roteirista Joe Simon, criou o Capitão América como símbolo dos Estados Unidos, um supersoldado patriota que surgia para elevar o moral das tropas. Foi com seu traço que, já na capa de sua primeira edição, o herói acerta um direto no queixo de Adolf Hitler. A mensagem não poderia ser mais clara: o diálogo é essencial para a preservação e equilíbrio de uma sociedade civilizada; com extremistas e fanáticos, porém, a força se faz necessária para evitar uma catástrofe. Kirby, que completaria 100 anos este ano, viu essa ameaça de perto, ele próprio combatendo nazistas ao ser convocado para o cenário europeu da Segunda Guerra em 1943.

E não há mal pior, claro, que o nazismo. Não havia a menor possibilidade de diálogo com quem promovia o poder de uma "raça superior" e o genocídio de um povo inteiro: no Holocausto, cerca de seis milhões de judeus foram mortos sob o regime nazista. Seis milhões. Assim como não há a menor possibilidade de diálogo com quem toma as ruas pregando a expulsão de quem pensa diferente, de quem tem aparência diferente, de quem segue uma cultura diferente. Nos anos 40, os super-heróis dos quadrinhos foram para a frente de batalha combater essa força do mal. Em 1941, Batman e Robin combatiam nazistas em seu próprio quintal. O Superman os enfrentou até em sua animação clássica, de 1943. A Mulher-Maravilha os desafio na ponta de sua espada. Ao fim da Segunda Guerra, muitos heróis das HQs que enfrentavam picos de vendas com sua defesa heróica de um mundo livre, viram seus números despencar quando ressurgiu a paz. Ainda assim, permaneciam vigilantes.

Indiana Jones enfeita o rosto de um nazista com os punhos

Com o tempo, os nazistas continuaram a ser retratados como vilões perfeitos – não só nos quadrinhos, mas também em outras mídias. Embora o propósito de entretenimento fosse claro, as entrelinhas também não eram sutis: a ameaça foi derrotada, mas sua semente continua germinando em mentes fracas. Em outras palavras: nunca esquecer. Foi assim que Indiana Jones fez com que nazistas se tornassem seus inimigos em dois filmes: Os Caçadores da Arca Perdida e Indiana Jones e a Última Cruzada. O escritor e desenhista Mike Mignola adicionou tintas místicas aos vilões ao colocar a obsessão de Hitler pelo oculto como gancho para as aventuras de seu Hellboy. Quentin Tarantino praticamente fez do alto comando da SS um enorme pudim de sangue no clímax absurdo e sensacional de Bastardos Inglórios. Magneto, na pele de Michael Fassbender, colocou uma bala no crânio de vários nazistas em X-Men Primeira Classe. Nas últimas seis décadas, nazistas foram retratados como objeto de medo, foram ridicularizados, foram desconstruídos, foram desmascarados. Nunca esquecidos.

O que nos traz a agosto de 2017, com um grupo de neo-nazistas carregando tochas e cuspindo palavras de ódio nas ruas de Charllotesville, Virginia. Claro que o mundo do século 21 não pode mais se curvar a tais demonstrações de intolerância, e quando um grupo que marchava pela tolerância tomou as ruas da cidadezinha americana no dia seguinte, o resultado foi um choque, vários feridos e uma morte. Em pleno século 21. "Queremos assegurar nosso direito de preservar as conquistas da raça branca", bradaram diversos fanáticos. "Temos o direito de não ver nosso país tomado por negros e imigrantes", dispararam outros. Nazistas tem direitos, claro. O direito de receber o punho direito (!) do Capitão América no queixo. O direito de ver uma roteirista de quadrinhos, Gail Simone (responsável por anos pelas histórias da Mulher-Maravilha) popularizar a hashtag #ComicsHatesNazis – ou "quadrinhos odeiam nazistas" – como uma lembrança do combate de décadas dos criadores de HQs a ideologias do ódio.

Batman e Hellboy sentam o braço em nazistas

Porque não é a toa que muitos dos super-heróis dos gibis, ao longo de décadas e décadas, resolvem seus problemas no braço. Na sensibilidade à flor da pele da sociedade do novo século, em que a correção política teima muitas vezes em atropelar o bom senso, muitos personagens são criticados por ser violentos demais, agressivos demais. Como se todos os problemas do mundo, fictício ou não, pudessem ser resolvidos com flores e um sarau. Não existe diálogo com quem prega o ódio. Não existe "democracia" ou "liberdade de expressão" quando essa expressão dita o extermínio de outros seres humanos. Neo-nazistas são uma realidade, e encontraram espaço para empoderar-se quando um presidente parece lhes dar carta branca para sair de suas tocas. Talvez assim seja melhor, talvez ver o rosto dessas pessoas ajude a calar suas ideias nefastas – é o que a internet tem feito com aqueles identificados entre os supremacistas brancos que marcharam em Charllotesville. Por que esse revide é a única linguagem que eles entendem, quando eles elegem os imigrantes como o inimigo. Ou os negros. Ou os judeus. Ou as mulheres. Ou eu. Ou você. Só a arte salva. Às vezes, com um belo soco no queixo de um nazista.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.