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Jack Kirby: Os 100 anos do arquiteto da história em quadrinhos moderna

Roberto Sadovski

28/08/2017 15h01

Sem Jack Kirby, não existiria uma indústria de histórias em quadrinhos. Sem Jack Kirby, a arte sequencial jamais faria parte da cultura pop. Sem Jack Kirby, a Marvel não seria a Marvel; a DC teria um vácuo abismal em sua trajetória. Sem Jack Kirby, gerações inteiras de desenhistas de HQs não teriam inspiração para sonhar com mundos fantásticos, criaturas colossais, heróis coloridos ou aventuras fantásticas. Sem Jack Kirby, afinal, o mundo seria um lugar muito mais cinza e enfadonho. Você até pode nunca ter ouvido falar em seu nome, mas se consome algum fragmento de entretenimento moderno, deve isso a ele: Capitão América, Thor, Hulk e Quarteto Fantástico, só pra apontar alguns, pela Marvel; o vilão Darkseid e os mundos cósmicos da DC. Tudo que vemos hoje em filmes, séries e animações tem o dedo de Kirby. Hoje ele completaria 100 anos de idade, e é hora de celebrar sua vida e sua obra.

Pelo menos era essa a cara do meu twitter hoje desde hoje cedo. Todo criador de quadrinhos, todo artista de cinema, reservou um tempo para expressar sua gratidão ao homem que tinha o apelido simples e direto de Rei. Não era por acaso. Nos anos 60, ao lado de Stan Lee, Kirby concebeu praticamente todo o universo Marvel. Foi uma explosão criativa até hoje sem paralelo. No intervalo de poucos anos, Kirby visualizou e tocou a arte de quase todos os novos personagens da editora, dividindo o volume com Steve Ditko e Don Heck, entre poucos outros. Mas em suas mãos repousava a responsabilidade de construir as histórias em quadrinhos como indústria ao lado de Stan. Até hoje fãs de HQs dividem sua "lealdade" a um ou a outro – muito acusando Lee de ter um papel menor do que realmente mostrou, deixando o papel de arquiteto da coisa toda com Kirby. É uma tremenda bobagem, já que cada artista teve uma participacão naqueles anos formadores muito além de escrever e desenhar gibis. Mas é também verdade que, abraçando diversas funções editoriais, Lee apenas rascunhava boa parte de seus scripts, deixando seu desenvolvimento nas mãos de Kirby.

Capitão América, criado ao lado de Joe Simon

Sua história, porém, começou muito antes de o Quarteto Fantástico começar o universo Marvel. Nascido e criado em Nova York, Kirby começou a exercitar seu talento nos anos 30, usando vários pseudônimos no lugar de seu nome de batismo, Jacob Kurtzberg. No começo da década seguinte, com a Segunda Guerra já em curso, criou ao lado de Joe Simon o Capitão América para a editora Timely Comics – que anos depois se tornaria a Marvel. Simon foi um parceiro recorrente, e com ele também deu origem a outro punhado de personagens para outra editora, a National Comics Publications, o embrião da DC. Não demorou para Kirby ser despachado para a guerra na Europa, desembarcando na Normandia meses após o Dia D. Seu trabalho era seguir com os primeiros batalhões em cidades ocupadas para desenhar mapas e imagens de reconhecimento, ajudando o avanço das forças aliadas contra o nazismo.

Seu retorno pós-Guerra foi marcado pelo volume de histórias em quadrinhos românticas produzido ao lado de Joe Simon, com quem terminou criando um selo próprio, Mainline Publications. Com o Capitão América agora retratado como caçador de comunistas em seu relançamento pela Atlas Comics em 1954, sem o aval de seus criadores, Kirby e Simon bolaram um personagem similar, o Fighting American, que passou rapidamente para uma sátira do universo de super-heróis. Seu estilo se mostrava cada vez mais refinado, e ele continuou a trabalhar como freelancer em diversas editoras e vários títulos diferentes ao fim da parceria com Simon, que deixou os quadrinhos para trabalhar com publicidade. Na segunda metade dos anos 50, Kirby emprestava seu traço regularmente à National, já rebatizada DC, criando o grupo de aventureiros Desafiadores do Desconhecido e contribuindo para as revistas House of Mystery, Showcase, Word's Finest Comics e Adventure Comics.

O Quarteto Fantástico e sua explosão de inovação e criatividade

Uma disputa criativa com os editores da DC o fizeram dar as costas à editora, mais ou menos na época em que ele passou a trabalhar mais próximo à Atlas, mesmo com um certo ressentimento por Stan Lee: ainda nos anos 40, após a criação do Capitão América, Kirby e Simon foram ejetados do título após alguém ventilar ao dono da editora que e a dupla andava insatisfeita com os royalties recebidos por sua criação e buscavam trabalho na concorrência. Como a Atlas não pagava o bastante por página produzida, Kirby acelerou sua produção, chegando a passar 14 horas por dia no estúdio em sua casa, desenhando histórias de todos os gêneros, de romance a guerra a westerns, mas se soltando mesmo com monstros gigantes e mundos fantásticos. Foi nessa época que ele criou Groot, a "Coisa do Planeta X", que depois a Marvel colocaria nos Guardiões da Galáxia, chegando ao cinema. Em novembro de 1961, porém, a parceria com Stan Lee gerou uma série que a editora queria para rivalizar com a Liga da Justiça da concorrência, um grupo de heróis unidos para proteger o planeta: nascia o Quarteto Fantástico.

A série era diferente de tudo que a indústria havia visto até então. Embora tratasse de pessoas com poderes extraordinários, as aventuras traduziam um certo naturalismo em um mundo contemporâneo e reconhecível. Em sintonia com os jovens da época, o Quarteto trazia pessoas "de verdade" em situações extraordinárias, com seus conflitos mundanos surgindo com a mesma importância das ameaças cósmicas. A série aparentemente ligou uma chave no inconsciente de Kirby, e o artista entregou em mais de uma centena de edições uma overdose de criatividade, mesclando pessoas comuns com criações fantásticas (sem trocadilho), usando o Quarteto Fantástico como plataforma para histórias de ação, aventura e, principalmente, ficção científica. O resultado foi uma evolução do status dos quadrinhos a arte pop moderna trazendo, com o trabalho nos bastidores de Lee para legitimizar as HQs e seus criadores, reconhecimento e maturidade para uma indústria que precisava de um choque para se reinventar.

O Pantera Negra, uma de suas dúzias de criações para a Marvel

 

Seu estilo e filosofia se tornaram a pedra fundamental da indústria de quadrinhos moderna, com a Marvel servindo como escola e plataforma para uma geração inteira de artistas. Kirby e seu estilo foram seguidos não só nos outros títulos da editora, mas também pelas concorrentes, que enxergaram em seu tsunami criativo o caminho para que as histórias em quadrinhos encontrassem sua sobrevivência. Nos meses que seguiram a criação do Quarteto, Lee e Kirby sopraram vida no Hulk, Thor, os X-Men originais, o Homem de Ferro (que seria desenhado por Don Heck), Magneto, Doutor Destino, os Inumanos e o Pantera Negra (primeiro super-herói negro). Para lançar Os Vingadores, a dupla buscou no baú da editora Namor, o príncipe submarino, e o Capitão América. Kirby, por sinal, desenhou também a edição 15 de Amazing Fantasy, com a introdução do Homem-Aranha, mas seu estilo "super-heróico" não agradou a Lee, que convocou Steve Ditko para assumir o traço do herói aracnídeo.

Enquanto suas páginas continuavam cada vez mais surpreendentes e inovadoras, com novas técnicas que iam de colagem ao uso de fotografias para retratar as viagens cósmicas do Quarteto Fantástico, nos bastidores Kirby se mostrava cada vez mais insatisfeito com a Marvel. Primeiro ele foi praticamente obrigado a ficar ao lado da empresa em um processo pelos direitos do Capitão América contra o ex parceiro Joe Simon. Depois, o crescente ressentimento com Lee, que clamava cada vez mais os méritos pela criacão do Universo Marvel. A falta de controle criativo e a recusa da Marvel em lhe dar crédito como roteirista e co-criador de diversos personagens amargaram a relação até que, em 1970, ele trocou a editora pela concorrência: após uma negociação que durou quase dois anos, Jack Kirby voltou para a DC. E com ele, veio o nascimento de um mundo sem limites.

Darkseid, grande vilão do universo Quarto Mundo criado para a DC

O impacto da criação do Quarto Mundo reverbera até hoje na editora do Superman e Batman. Kirby começou a exibir seus novos conceitos de aventura e ficção científica na série Superman's Pal Jimmy Olsen, mas logo ganhou sua própria caixa de brinquedos com os títulos Novos Deuses, Senhor Milagre e O Povo do Amanhã. O grande vilão deste novo universo, contido e coerente com o mundo estendido da DC, era Darkseid, uma encarnação poderosa do mal que deu ao artista espaço para falar sobre mitologia, símbolos, ficção científica, religião e fé – temas pesados em um mundo habitado por super-heróis, mas cujo escopo foi preservado pela editora e hoje é o pilar da DC no cinema, com Liga da Justiça chegando aos cinemas em setembro usando a trilha aberta por Kirby para traçar as ameaças enfrentadas pelo coletivo de heróis em tela grande.

O mundo dos quadrinhos, porém, é fluido, e foi em 1975 que Kirby, para o total e completo espanto de fãs e da indústria, retornou à Marvel, assumindo a série mensal do Capitão América – e criando, de cara, algumas das melhores histórias do personagem – e introduzindo mais seres cósmicos no caldeirão da editora com Os Eternos, que trazia semideuses cósmicos batizados Celestiais e histórias que lidavam com a origem da vida humana na Terra. Mas a mágoa com a Marvel continuava forte, em especial em relação a pagamentos de direitos autorais. Essa luta, e uma gerência encabeçada por novos executivos, fizeram com que a DC colocasse diversos de seus personagens do Quarto Mundo na série de animação Super Powers, garantindo pagamento de royalties a Kirby pela venda de brinquedos relacionados ao desenho. Ao fm dos anos 80, ele conseguiu uma vitória sobre a Marvel, que lhe retornou cerca de 2 mil páginas originais das quase 13 mil que ele desenhou para a empresa.

os Super Powers da DC no traço de Jack Kirby

Jack Kirby morreu em 6 de fevereiro de 1994, aos 76 anos, na California. Seu coração cedeu, mas sua luta continuou. Em 2009, seus herdeiros entraram com uma ação contra os estúdios de cinema Disney, Fox, Universal, Paramount e Sony pelo controle de vários personagens que ele co-criara nos anos 60 e 70. A ação arrastou-se por anos, ganhando notoriedade pelo sucesso cada vez maior dos filmes de super-heróis que se tornaram pilares da indústria no século 21. As partes chegaram a um acordo em 2014, mas o caso abriu um precedente enorme pela luta pelos direitos de artistas que muitas vezes morrem sem receber um centavo dos bilhões de dólares angariados por suas criações. Seu legado, portanto, vai além da força criativa que inventou a gramática narrativa das histórias em quadrinhos modernas. Não precisa ir muito longe para sentir essa energia: basta abrir as páginas de qualquer gibi com o traço inigualável de Jack Kirby. Uma vez exposto a seu mundo, em que a imaginação não tem limites, não há volta.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.