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Atômica prova que Charlize Theron faz – e bem! – o filme que bem entender

Roberto Sadovski

01/09/2017 04h25

David Leitch não é nenhum gênio. Lapidado como dublê, e alçado à direção (ao lado de Chad Stahelski) em De Volta ao Jogo, em que Keanu Reeves é um assassino implacável em busca de vingança, ele sabe montar um espetáculo direitinho. Atômica segue a cartilha da pancadaria moderna. É mega estilizado, tem narrativa ligeira e uma trama simples (mas não simplória) e direta. É um filme de espionagem de mentirinha, mais aparentado a Jason Bourne do que a John le Carré, criando um universo 100 por cento fantasioso em torno de um acontecimento histórico: a queda do Muro de Berlim e a implosão da Guerra Fria no final dos anos 80. Trilha sonora de greatest hits, cenas de ação extremamente bem coreografadas (a gente volta já a elas) e o pedigree máximo moderno, já que é adaptado de uma história em quadrinhos. Tudo nos conformes. Ainda assim, Atômica é diversão acima da média por um único motivo: Charlize Theron.

Seu papel é daqueles desenhados para devorar o cenário. Lorraine Broughton é uma espião britânica enviada a uma Berlim ainda dividida para recuperar o corpo de um agente morto – e uma lista que ele carregava, cortesia de um desertor soviético, com nomes e codinomes e missões sujas, capaz de "arrastar a Guerra Fria por mais quatro décadas". Ela precisa encontrar o contato inglês na Alemanha (James McAvoy) e recuperar a tal lista. E só. Mas o roteiro, baseado na HQ The Coldest City, de Antony Johnston e Sam Hart, é mera desculpar para Leitch descer a lenha em sua estrela. Em duas horas de filme, Charlize bate e apanha um monte, e não em lutas bonitinhas ao estilo Matrix ou As Panteras: a coisa é brutal, com violência extrema e consequências reais (a atriz perdeu um par de dentes durante as filmagens). Tudo em nome do mais puro entretenimento, em um filme barato (para os padrões ianques), despretensioso e absurdamente divertido. É pra sair do cinema elevado depois de tanta pancada, tanto humor negro, tantas reviravoltas e tanta Charlize.

Charlize Theron entra em ação em Atômica!

Ah, Charlize… Desde que despontou no cinema como a mulher de Keanu Reeves no igualmente divertido Advogado do Diabo, a atriz sul-africana reescreveu as regras do que é uma estrela de cinema. Foi par romântico em um punhado de filmes bons e ruins, protagonista em mais um punhado de produções bacanas e insípidas, ganhou um Oscar com sua transformação assombrosa em Monster: Desejo Assassino e, desde então, equilibra a carreira entre produções independentes e monstruosidades de grandes estúdios. Não raro, ela é o único ponto brilhante, mesmo quando o filme não merece sua presença. Dois anos atrás deixou o queixo coletivo do planeta no chão como a Furiosa na obra-prima Mad Max: Estrada da Fúria, filme que ainda não encontrou adversário desde que foi lançado, e seus fãs mais cabeçudos cobram que ela faça um filme "mais sério". Como resposta, foi ser vilã em Velozes & Furiosos 8 (provavelmente a grana mais fácil que ganhou) e veio arrebentar crânios em Atômica.

A resposta para escolhas tão aparentemente banais é simples: ela pode. Aos 42 anos, ela é uma das poucas atrizes que comandam um elenco, uma das poucas estrelas que os estúdios ainda míopes percebem ser capaz de mobilizar uma plateia internacional. É bobagem, mas ainda é como a roda gira. Charlize entende o jogo como poucas e usa seu poder para fazer os filmes que lhe dão prazer. Ela faz o que ela quer, e não o que estúdios ou público esperam. Às vezes sai uma bobagem absurda como Um Milhão de Maneiras de Pegar na Pistola (vergonha de escrever esse título, acredite). Outra sai uma pérola como Jovens Adultos. Não importa onde, ela empresta seu olhar suave e postura elegante, o tipo de presença que Sigourney Weaver, entre poucas, sempre despertou (não é ao acaso que Ridley Scott a escalou em Prometheus).

Charlize Theron…. entra em ação em Atômica!

Esse tipo de qualidade não se aprende: Charlize já chutou a porta assim desde que foi descoberta, ao acaso, quando um agente a viu em um banco de Los Angeles, tentando sem sucesso descontar seu último cheque. O sujeito se tornou seu empresário, mas logo foi ejetado ao lhe mandar roteiros com papéis que pediam uma atriz loira e linda, como Showgirls ou A Experiência. Logo, ela estava selecionando as parcerias a dedo, trabalhando com Tom Hanks, Woody Allen, Robert Redford e James Gray. Se nem sempre os filmes acertavam, Hollywood logo percebeu que nunca a culpa recaia sobre Charlize, e ela foi galgando, sem nunca se dobrar, a escada sinuosa do sucesso na indústria. Embora o Oscar tenha vindo com Monster, seu auge criativo se deu mesmo em Mad Max: Estrada da Fúria. Sem muito esforço, ela dividiu o protagonista do filme com Tom Hardy (o próprio Max) e entregou uma performance complexa, cheia de nuances, um arco completo de uma guerreira pós-apocalíptica em busca de seu lar – e de um sentido para o mundo quebrado que habita.

Depois disso, Atômica é um alívio, um filme divertido de ver (e provavelmente de realizar), em que ela em nenhum momento liga o piloto automático, entregando uma performance completa e dando à sua personagem camadas que a deixam sempre em conflito e sempre misteriosa – para nós do lado de cá, sempre interessante. Como produtora, Charlize acertou não só em deixar Leitch conduzir o jogo com dinamismo (o longo plano-sequência em que ela invade o ninho de espiões russos com sede de sangue é um deleite), como também selecionou bem seus parceiros em cena. De James McAvoy, que faz seu aliado nada confiável, a Sofia Boutella, com quem perverte a regra de "mocinhos e mocinhas" em filmes de ação, passando pelos veteranos John Goodman e Toby Jones, que compoe com ela uma trinca de tensão e humor nervoso no interrogatório que forma a espinha dorsal da narrativa. Atômica pode ser bobão, pode ser descartável, pode ser um produto de (muito) estilo e (pouca) substância. Com Charlieze Theron à frente, porém, é um banquete completo. E ela, mais do que ninguém, está podendo.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.