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Tom Cruise usa puro carisma para vender a história real de Feito na América

Roberto Sadovski

15/09/2017 04h05

Existe algo fascinante em Tom Cruise quando ele coloca o "astro de cinema" para descansar e se entrega ao ofício de ator. E dos bons! É quando Cruise coloca todo seu carisma e todo seu charme a favor de uma boa história. Às vezes seus predicados entram no caminho e atrapalham a história. Não é o caso neste Feito na América. É exatamente por Cruise ser Cruise que ele vende tão bem a história de Barry Seal, piloto comercial americano que, recrutado pela CIA para pilotar missões de reconhecimento clandestinas pela América do Sul. O bom trabalho o transformou em "garoto de recados" da Agência com o militar panamenho Manuel Noriega. O que o levou a traficar cocaína para o Cartel de Medellin dentro dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo em que ele passou a levar armas para os Contras na Nicarágua – e trazer esses mesmos rebeldes para ser treinados em solo americano. O que, obviamente, não ia acabar bem.

O diretor Doug Liman, que trabalhou com Cruise na excelente ficção científica No Limite do Amanhã, mergulha na história real de Seal e retira dela humor e humanidade, criando um filme de ação e uma comédia de absurdos, com seu protagonista no centro de uma operação tão impressionante quanto ilegal. Nós acreditamos em cada passo porque é Cruise quem está ali. O verdadeiro Barry Seal, por sinal, conseguiu se manter vivo nessa triangulação de armas, drogas e dinheiro por sua personalidade assumidamente reptiliana; Cruise, por sua vez, abraça sua persona falastrona, o vendedor de carros usados com sorriso impecável que trafega, sabe-se lá como ou por quanto tempo, entre pessoas muito mais perigosas do que ele jamais foi. Liman entende como funciona o carisma de seu protagonista e não se furta em construir um filme, amparado pelo roteiro escrito a quatro mãos com Gary Spinelli, em torno dele.

Pablo sem Wagner: a turma boa do Cartel de Medellin

O tema, claro, é pesado. Ao mesmo tempo, é irresistível, assim como qualquer assunto relacionado à atmosfera política, econômica e social da América do Sul pós-Narcos. A série do Netflix reacendeu o interesse do público na história das pessoas que marchavam feito reis em seu império erguido pelo tráfico, e também dos políticos, soldados e homens da lei que os perseguiram. Feito na América entrega uma terceira via, a do sujeito que viu naquele palco uma oportunidade para criar uma vida fora dos padrões, regada a malas de dinheiro literalmente enterradas no quintal. O poder é sedutor, e Barry Seal se entregou a ele não apenas por não ter absolutamente nenhuma outra saída, mas também porque seu apelo era irresistível. Viciado em adrenalina, Seal parecia ter prazer não só com o dinheiro que passava (e ficava) em suas mãos, mas também por conseguir ludibriar o "sistema" de maneira tão absoluta. "A CIA deu a um homem propenso a quebrar regras a oportunidade perfeita para fazer justamente isso", me disse o diretor meses atrás.

Não atrapalha, claro, Tom Cruise estar absolutamente fantástico no papel, à vontade talvez como não se via há mais de duas décadas, desde que deu corpo a Jerry Maguire para Cameron Crowe. Ser um "astro de Hollywood" como ocupação é trabalho que Cruise entende de olhos fechados, mesmo que boa parte de seus filmes traga uma certa rigidez – obrigatória quando ele encara um filme de ação, para transmitir uma mistura equilibrada de precisão com invencibilidade; cirúrgica quando ele precisa se entregar a um papel que abandona sua persona de astro. Feito na América, apesar do tema espinhoso, foi uma oportunidade para ele simplesmente exercitar seus músculos dramáticos com mais desapego – o que não significa preguiça. Cruise vende muito bem seu Barry Seal como sujeito durão ao encarar uma juíza que quer trancafiá-lo para o resto da vida, também abraça o papel do pai de família dedicado a proteger e assegurar o futuro dos seus, e não deixa de lado o medo resignado ao perceber que o jogo, para ele, chegou ao fim.

Barry Seal leva um papo com o (futuro) general Noriega

Todos os elementos são combinados por Doug Liman em um filme poderoso, o recorte de uma época em que o governo americano exercitava seu poder clandestino para fazer a balança do mundo pender a seu favor. Usar material de arquivo do então presidente Ronald Reagan, falando sobre sua "guerra contra as drogas", e de seu cão de ataque, o general Oliver North, foi o toque perfeito em um filme que escancara os bastidores do poder e as consequências de um governo que acreditava ter a obrigação de policiar o mundo. Exatamente por isso que Feito na América é tão atual. Lançado nos EUA de Trump, num momento em que o equilíbrio de poder no planeta parece chegar a um impasse histórico, o filme nos faz coçar a cabeça ao levantar a cortina sobre como a política de verdade é feita. Clandestina. Perigosa. E com os Barry Seals da vida decidindo o rumo da história sem que ninguém faça ideia que eles existem.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.