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"mãe! é um filme que só eu poderia fazer", diz o diretor Darren Aronofsky

Roberto Sadovski

25/09/2017 04h23

SAO PAULO, BRASIL – SEPTEMBER 19: Director Darren Aronofsky attends the "mother!" photo call and.press conference at Cinemark Eldorado on September 19, 2017 in Sao Paulo, Brazil..(Mauricio Santana/Getty Images for Paramount Pictures)

Ninguém devia estar surpreso que um filme como mãe! tenha saído da mente de Darren Aronofsky. Não é como se Michael Bay de repente filmasse os roteiros de Lars von Trier ou algo assim. Uma espiada na carreira do diretor já é um ótimo caminho para entender suas obsessões e seu processo para criar histórias que sempre abordam temas e ideias muito além da superfície. Um ponto central é sua interpretação para as histórias contadas na Bíblia. Mas elas nunca surgem de forma religiosa ou conflitante. "Essas histórias pertencem a todo mundo", explica Aronofsky, que bateu um papo comigo por conta do lançamento de mãe!. "São histórias pertinentes a todas as culturas porque trazem o poder do mito." O que não deixa de ser curioso, vindo do diretor de Noé, que é explicitamente um recorte da Bíblia, e de π (ou Pi), que traz uma curiosa analogia de Deus à matemática.

mãe! traz esse mesmo tipo de construção, mas surgiu a partir de uma necessidade artística diferente. "Minhas ideias geralmente são uma mistura de emoção e pensamentos, mas mãe! foi resultado de emoção pura, raiva, uma necessidade de gritar", continua. "Eu queria algo que capturasse essa paixão que enxergo com nossa conexão com o ambiente que nos cerca, contar pela primeira vez a história da Mãe Natureza, algo sob seu ponto de vista." O diretor faz um paralelo com a criação de uma música, em que um compositor usa uma única emoção para criar uma única canção: "Eu queria usar isso, essa raiva que eu estava sentindo, e fazer dela um filme". Nesse ponto já ficou claro que o processo de criação de Aronofsky não segue uma narrativa linear, e sim uma mescla de sentimentos e ideias e metáforas. "Volto ao poder do mito, em reinterpretar histórias que não conseguimos parar de contar, que tem significado para nós, agora", empolga-se. "E não importa mesmo se as histórias da Bíblia aconteceram de verdade ou não, questionar isso é diminuir o poder do mito. Quando a gente pensa sobre Ícaro, ninguém questiona se ele de fato voou para perto do Sol, mas todo mundo imediatamente sabe o que isso significa." Tá certo.

Aronofsky dirige Ellen Burstyn em Réquiem Para um Sonho

Darren Aronofsky nasceu em Nova York e surgiu para o mundo do cinema em 1998 quando lançou o visionário – e ultrabarato – π, que já trazia os questionamentos e o impulso criativo que o acompanha duas décadas depois. Em 2000 ele usou a influência e a boa vontade gerada por π para fazer Réquiem Para um Sonho que, mesmo utilizando a equipe de sua estreia, contou com atores mais calejados na frente das câmeras, como Ellen Burstyn e um Jared Leto, já com Clube da Luta e Psicopata Americano no currículo, em franca ascensão. O filme foi um arraso – e eu confesso que me destruiu. Adaptando o livro de Hubert Selby Jr., Aronofsky criou um pesadelo em que quatro pessoas com quatro sonhos distintos aos poucos são despidos de sua humanidade ao se envolver com drogas mais e mais pesadas. Aplaudido no mundo inteiro (e com mérito para tal), Réquiem revelou o diretor como um artista que equilibrava estilo e substância, além de uma tendência para enxergar o aspecto mais sombrio do ser humano.

O que era exatamente o que a Warner queria quando, no começo do século 21, buscava relançar o Batman no cinema, e contratou Aronofsky para a tarefa. O diretor, que havia trabalhado brevemente com Frank Miller em um roteiro que adaptaria a série de quadrinhos Ronin para o cinema, chamou o quadrinista e foram recriar o Homem-Morcego, adaptando a série Batman: Ano Um, do próprio Miller. As ideias de Aronofsky, porém, mostraram-se muito radicais para o estúdio, e o projeto terminou engavetado – curiosamente, um dos atores que o diretor buscou para dar vida ao Cavaleiro das Trevas, terminou com o papel quando Christopher Nolan fez Batman Begins: Christian Bale. Trabalhar com personagens e ideias alheias não era muito sua praia, afinal, e ele volrou seu olhar para um roteiro grandioso em escala e ambição que ele pretendia rodar com Brad Pitt e Cate Blanchett: Fonte da Vida.

O diretor com Russell Crowe durante as filmagens de Noé

Atrasos constantes fizeram com que primeiro Pitt, depois Blanchett, lentamente se afastassem do filme, uma ficção científica que acompanha o mesmo homem (ao menos eu acho que é) em três momentos do tempo: como um conquistador espanhol do século 16, um cientista contemporâneo e um viajante espacial do século 26. A trama não linear saiu da gaveta com um orçamento de 70 milhões de dólares, mas a partida de seus astros deixou os financiadores reticentes. Aronofsky reescreveu o texto para acomodar um orçamento cortado pela metade e convocou Hugh Jackman e Rachel Weisz para finalmente tirar a trama do papel. Eu encontrei o diretor no set de Fonte da Vida em Montreal, lá atrás em 2005, e ele era o retrato da exaustão, com barba gigante e olhos fundos. Fonte da Vida não causou furor quando saiu, mas sua trabalha que flutua sobre ciência e espiritualidade, religião e fé, vida e morte, ressoa forte – com temas que, por sinal, não são estranhos a mãe!.

"Nunca penso em como vou fazer o filme quando começo a escrever", pontua o Aronofsky. "A preocupação com o dinheiro e como as ideias serão executadas só vem depois." O principal, ressalta, é seguir a verdade da história e dos personagens. "Não importa se o filme custa 20 mil dólares, como π, ou 100 milhões como Noé", continua. "O que importa é colocar na tela o máximo de idéias com os recursos em mãos." Para ele, fazer filmes é equilibrar um triângulo que tem dinheiro, tempo e criatividade em seus vértices: são os elementos sempre em conflito, com o diretor tentando achar o equilíbrio. Talvez por isso ele tenha seguido a frustração de Fonte da Vida com o enxuto O Lutador (talvez seu melhor filme), que colocou Mickey Rourke como um veterano da luta livre estilão telecatch em busca da glória perdida. O respiro criativo o fez ter mais ambição em seu projeto seguinte, Cisne Negro, sobre uma bailarina obcecada que perde o vínculo com a realidade. Seu sucesso impeliu a ambição de Noé, uma alegoria bíblica de grandes ideias e grande orçamento que bateu na trave financeiramente.

Jennifer Lawrence não se surpreendeu nem um pouco por mãe! ser de Aronofsky

E a balança pendeu mais uma vez com mãe!, que ficou no meio do caminho como projeto de estúdio (custou 30 milhões de dólares, mas caminha para um fracasso financeiro que dificilmente vai recuperar seu custo) mas surge como a prova de que o cinema pode – e deve – apostar em cineastas cheios de grandes ideias como Darren Aronofsky. Filme após filme, ele continua abraçando os mesmos temas e investigando as camadas do poder do mito. Para quem acompanhou sua carreira, mãe! pode ser chocante, mas definitivamente não é uma surpresa, e sim uma progressão. "Fui abençoado com a habilidade de fazer filmes que só eu posso fazer", orgulha-se, para depois rir de si mesmo. "Ou que talvez só eu queira fazer, como mãe!." Com uma carreira até o momento pontuada por criações originais (Réquiem Para um Sonho sendo uma honrosa exceção), Aronofsky ocupa posição privilegiada, e até o momento não teve de trabalhar como diretor de aluguel – depois de Batman: Ano Um ele esteve ligado ao remake de RoboCop e a Wolverine Imortal, ambos produzidos posteriormente com outros cineastas. "Ideias originais são mais importantes", conclui. "Enquanto puder trabalhar assim, é exatamente o que farei."

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.