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Bastidores de Todo o Dinheiro do Mundo são mais interessantes que o filme

Roberto Sadovski

01/02/2018 03h50

Nove dias. Foi o tempo que Ridley Scott precisou para, com seu Todo o Dinheiro do Mundo na lata, reunir equipe técnica e parte do elenco para refilmar parte deste drama histórico. Justamente a parte em que Kevin Spacey interpretava o bilionário John Paul Getty, figura central na produção que dramatiza o sequestro de um de seus netos no começo dos anos 70. Não era uma ponta ou uma participação especial, mas parte integral da trama. Antes mesmo de o filme estar pronto, antes ainda de a temporada de premiações do cinema estar definida, Spacey já era apontado como figura certa para garfar, entre outros troféus, o Oscar de melhor ator coadjuvante pelo papel. Então veio o escândalo em torno de Harvey Weinstein. E a avalanche de acusações de assédio e abuso sexual por parte de gente poderosa do cinema. Dedos apontaram para Spacey gritando "predador" e "pedófilo". Sua carreira, num estalar de dedos, terminou. Todo o Dinheiro do Mundo corria o risco de chegar aos cinemas atraindo outro tipo de publicidade – o pior tipo. E Ridley Scott não ia deixar que ninguém arruinasse seu filme.

Alguns telefonemas e algumas reuniões depois, eis que Scott arrancou um par de milhões de seus investidores e voltou às locações, agora com Christopher Plummer no papel de Getty, e o filme experimentando uma costura nunca antes vista na história do cinema. Claro, atores já foram substituidos no meio de filmagens – um dos casos mais notórios foi Eric Stoltz, trocado por Michael J. Fox com algumas semanas de produção de De Volta Para o Futuro. Mas nunca houve algo em circunstâncias assim, com o trailer do filme nos cinemas e seu material promocional enfeitando lobbies por todo o mundo. Nada disso fez diferença para Scott. Aos 80 anos recém completados, o diretor de Blade Runner e Thelma & Louise (e Alien, e Gladiador, e Perdido em Marte) entende como poucos as engrenagens de um filme. "Tudo já estava preparado", disse à época das refilmagens. "Eu sabia exatamente o que eu queria e como queria, então foi como fazer novos takes no mesmo dia." Sobre seu antigo ator, o silêncio.

Michelle Williams e Mark Wahlberg enfrentam a imprensa – um dia normal!

A essa altura, é impossível imaginar como Todo o Dinheiro do Mundo seria com Kevin Spacey interpretando Getty. Mas a verdade é que Christopher Plummer injeta tanta classe, tanta profundidade no personagem que fica difícil imaginar outro ator no papel. Pena que o foco escolhido por Scott, com um roteiro baseado no livro Painfully Rich: The Outrageous Fortunes and Misfortunes of the Heirs of J. Paul Getty, tenha sido o sequestro de John Paul Getty III, então com 16 anos, e as tentativas de sua mãe (Michelle Williams) em manter a sanidade e recuperar seu filho, mesmo com a recusa do velho bilionário em pagar o resgate de 17 milhões de dólares – apesar de ser o homem mais rico da história do mundo, Getty lavava suas próprias roupas no banheiro de seu quarto no hotel para não ter de pagar por serviço de quarto. Para complicar, Scott escalou Mark Wahlberg como o ex-espião, responsável pela segurança do magnata, que conduz as negociações em seu nome: poucas vezes um personagens foi tão inútil e poucas vezes um ator esteve tão deslocado em um filme.

É possível enxergar o subtexto por trás da intenção de Ridley Scott ao escolher essa história em particular. O sequestro pode ter sido o episódio mais midiático na vida do clã Getty, mas seria o estopim para o diretor mergulhar fundo na alegoria sobre a avareza humana, sobre o real valor do dinheiro e como ele é capaz de corroer e corromper a alma – exatamente o dilema experimentado pelo bilionário. Sob esse prisma, Christopher Plummer, aos 88 anos, encontra o equilíbrio perfeito em suas palavras e atitudes como Getty. É o tom ao contar uma história de sua juventude para o neto ainda criança; é o desprezo com o qual responde às centenas de cartas que lhe alcançavam com pedidos de ajuda; é a frieza ao analisar os prós e contras de pagar o resgate, calculando em sua mente formada por cifrões o valor da vida do próprio neto. Sempre que Plummer entra em cena o filme incendeia, e temos um vislumbre das ideias explosivas que movem um diretor como Scott.

Ridley Scott, em plena refilmagem, dirige Wahlberg e Christopher Plummer

Mas a partida inesperada de Kevin Spacey fez com que Ridley entrasse num modo pragmático para tocar a produção e atingir sua data de lançamento original – o que ele conseguiu. É um feito e tanto, mas a velocidade industrial teve um custo emocional, e Todo o Dinheiro do Mundo parece ter perdido seu ponto de equilíbrio entre biografia ficcionalizada e drama de ação. É um filme corretíssimo, mas é também um filme sem paixão, uma obra menor em sua filmografia fantástica. Scott encontrou-se em uma situação em que, não importasse a decisão, ele só poderia perder. Decidiu, então, jogar as cartas que achou melhor para sua obra. Com consequências. O estúdio até trocou o primeiro trailer, que trazia um tom mais dramático e misterioso acerca de John Paul Getty, por outro enfatizando ação e os personagens de Williams e Wahlberg. Reconstruir Todo o Dinheiro do Mundo pode ter retirado um elemento potencialmente perigoso da equação. Foi uma jogada ousada do ponto de vista de marketing e também como gerenciamento de produção. Mas aqui estamos, falando justamente sobre Kevin Spacey. Por outro lado, foi Christopher Plummer quem terminou com aquela indicação ao Oscar de melhor ator coadjuvante.

E esse era o trailer original… com Kevin Spacey!

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.