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Thundercats dá um aviso: nerds velhos não são donos da cultura pop!

Roberto Sadovski

22/05/2018 05h18

ThunderCats era uma animação infantil dos anos 80. A trama era simples: após a destruição de seu mundo, um grupo de guerreiros felinos humanoides é isolado em um planeta dominado por uma força maligna. Era bacana, o desenho era bonitão e empolgante, os personagens tinham personalidade. Era também raso como um pires. E, como toda animação da época, servia unicamente para vender brinquedos. Não há absolutamente nenhum pecado nisso, assim como não há o menor problema em abraçar a nostalgia para admirar um desenho animado bobinho como uma cápsula do tempo para uma era mais inocente. Nada mais natural que repaginar uma propriedade intelectual para uma nova geração de fãs, certo?

Aparentemente, não. O anúncio de uma nova série com os personagens, batizada ThunderCats Roar, aparentemente mexeu nos brios de uma turma que provavelmente usava calças curtas quando o desenho original foi exibido. O barulho foi de "a nova animação é horrível" a "esses malditos sem criatividade merecer arder no inferno" em velocidade supersônica. O motivo é que o desenho atualmente em produção, com previsão de estreia para o ano que vem, recria o conceitos dos ThunderCats com a estética das animações modernas. É um pouco como Teen Titans Go!, que reimaginou os Novos Titãs dos quadrinhos da DC como personagens fofos, coloridos, movimentados e de traço mais infantil. Dá uma olhada no teaser de ThunderCats Roar e volta aqui.

Definitivamente, não é o Lion-O do seu papai – e nem deveria ser! O estilo segue um padrão de animação alinhado com o novo século, com ênfase no humor e em gags visuais, diferente da narrativa de ação que era regra três décadas atrás. Novos tempos, novos brinquedos, certo? Bom, para uma turma nerd que já estava viva quando Luke descobriu que Darth era seu pai, modificar um desenho animado infantil para crianças da nova geração é pecado imperdoável. Pior: os criadores da nova série "obviamente" seriam idiotas acerebrados, picaretas que se apropriam do legado de seus antecessores e "estragam tudo" ao imprimir uma roupagem progressista! Pausa para sentir profunda vergonha alheia dessa rapaziada…

Vamos ao óbvio. O mundo mudou, a demanda por entretenimento mudou, as múltiplas plataformas e os diversos modos de consumir animação, para ficar nesse exemplo, sofreram modificações profundas. ThunderCats, como eu apontei lá no começo, é uma propriedade intelectual perfeita para ser reimaginada com uma visão moderna, mirando basicamente o mesmo público que seu antecessor apontou lá nos anos 80: crianças! A série original tinha zero sofisticação, trazendo uma narrativa repetitiva e sem tons de cinza da luta do bem contra o mal. Por que Mumm-Ra, o "de vida eterna", insistia em investir contra os novos habitantes felinos do Terceiro Mundo? Vai saber. Por que Lion-O e seus comandados, que viviam uma vida de avanços tecnológicos na Toca dos Gatos, continuavam a confrontar os mutantes enviados pelo vilão? Bom, era isso ou brincar com um novelo. A narrativa não avançava, a não ser quando um novo brinquedo (veículo ou personagem) precisava ser apresentado. Era legal pra caramba – ao menos quando se tinha 11, 12 anos de idade. Agora a criançada vai ter oportunidade de (re)descobrir os personagens, mas em sua própria linguagem. Chiar por conta disso é coisa de adulto incapaz de abrir mão de sua infância.

Os ThunderCats dos anos 80: bacana, mas pertence ao passado

Os anos 90 trouxeram uma mudança no modo de produzir animações mainstream. Os produtores de Os Simpsons e de Batman – The Animated Series, só para ficar em exemplos óbvios, entenderam que o público estava ficando mais sofisticado, o que exigia histórias mais sofisticadas, mesmo que eles seguissem como produtos. As décadas e as novas tecnologias trouxeram uma nova demanda, e as séries animadas foram se adaptando, como As Meninas Superpoderosas e o próprio Teen Titans Go!. O alvo continua o mesmo: a criançada, ávida para acordar cedo aos sábados e devorar uma dose cavalar de desenhos animados. Olha como as coisas mudam, já que as "manhãs de sábado" deixaram de ser sinônimo de desenhos animados, que hoje são consumidos em tablets e smartphones, com a petizada escolhendo o que ver e como ver na hora que bem quiser. É uma evolução natural, já que ninguém em 1985, quando He-Man e ThunderCats (e TransformersG.I. Joe) reinavam supremos, esperava que os desenhos tivessem a cara de Manda Chuva ou Tutubarão ou A Pantera Cor de Rosa.

Sem falar que ThunderCats Roar cutuca fundo uma das últimas trincheiras dos nerds – de longe, o naco de fãs mais insuportável da cultura pop. Muitas crianças que se tornaram adultos com laços fortes com o passado, seja colecionando mil traquitanas nostálgicas, seja escrevendo e dissecando recortes de entretenimento (opa, eu me coloco nesse mesmo balaio!), tem dificuldade em "abrir" suas paixões para um público mais amplo. Um sujeito apegado a ThunderCats exige exclusividade nesse pedaço de seu passado, um momento cristalizado que muitos de seus conterrâneos, preocupados com os boletos no fim do mês, não dá mais a mínima. Quando algo tão "precioso" volta a pertencer à massa, ele deixa de ser especial aos olhos de muita gente – o que é encarado como agressão. Isso vale para Star Wars (nem preciso dizer quanto marmanjo ficou furioso com Os Últimos Jedi por ter "traído a essência de Luke Skywalker"), vale para a Marvel (conheço nerd que não admite que existam fãs do Homem de Ferro ou do Capitão América que jamais tenham folheado um gibi), vale para qualquer propriedade intelectual que desvie de seus "padrões". O tempo é fluido, mas uma rapaziada gostaria que ele fosse imutável. Não é.

Por fim, ThunderCats. Nem é a primeira vez que a série ganha um reboot, já que em 2011 o desenho foi relançado com um traço mais próximo ao estilo anime… e durou uma única temporada, mesmo com os novos roteiros adicionando mais camadas à história dos personagens. Onde será que estavam todos os fãs que hoje estão chorando pela "heresia" da nova animação? O original, por sinal, é um desenho animado bacana, que provavelmente tinha uma das melhores aberturas da história ("ThunderCats are loose!") e definitivamente não trazia nada mais profundo do que a vontade de vender brinquedos e divertir a molecada. Os 130 episódios originais continuam exatamente os mesmos, seja em coleções de DVDs, seja online, seja no baú de brinquedos velhos do seu primo Joca. ThunderCats Roar, por sua vez, é moderno e pretende falar para uma nova geração, que vai poder curtir a visão além do alcance da espada justiceira com mais humor e não menos ação. Tem uma turma que não admite que essas coisas não são feitas para eles, que não entende que os tempos mudam e que algo familiar, mesmo apresentado de outra forma, não precisa ser automaticamente desqualificado. Tem uma turma que se acha guardiã da cultura pop, únicos com o direito de meter a mão. Não são.  É legal olhar para o passado com carinho, mas o passado é passado. E faz bem, na esmagadora maioria das vezes, simplesmente deixar o futuro chegar.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.