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30 anos depois, por que nunca vimos uma continuação de Roger Rabbit

Roberto Sadovski

26/06/2018 02h39

Uma Cilada Para Roger Rabbit chegou aos cinemas em junho de 1988 e deixou queixos no chão. Produzida por Steven Spielberg e dirigida por Robert Zemeckis, a aventura foi um dos últimos grandes filmes-evento originais, uma produção que teve sua antecipação cuidadosamente construída por meses e, quando finalmente estreou, entregou algo verdadeiramente original. No ano seguinte, Batman pegou o bastão do Guerra nas Estrelas original e arquitetou o blockbuster moderno. A cada ano, mais adaptações de quadrinhos e livros bombásticos, continuações, reboots, reinvenções e universos fizeram do cinema uma extensão de dezenas de outras mídias, uma atração a mais como parte de todo um pacote pop. Cada vez mais, porém, a sensação de experimentar algo verdadeiramente novo se torna rara. Filmes são, obviamente, produtos. Como tal, eles ampliam seu escopo mais e mais para capturar a atenção de um público em constante dispersão. Mas acho que nem o roteirista mais ousado atualmente arriscaria uma trama policial noir, ambientada na Los Angeles dos anos 40, protagonizada por um detetive particular fracassado e um… coelho de desenho animado!

Não que Cilada fosse uma criação original. O filme adapta Who Censored Roger Rabbit?, um romance de mistério publicado em 1981 por Gary K. Wolf. Do livro, porém, só a ideia central de humanos e cartoons dividindo o mesmo mundo sobreviveu. A trama é radicalmente diferente, trocando um cenário contemporâneo por uma ambientação noir, e substituindo os personagens de tiras de jornais por astros de desenhos animados. Tirando algumas frases – em especial a mais famosa de Jessica Rabbit, "Eu não sou má, apenas me desenharam assim" -, o filme eleva o material original em um trabalho espetacular de Zemeckis. E foi de fato um filme-evento, uma produção ousada que misturou atores reais (Bob Hoskins, Christopher Lloyd) com desenhos animados tridimensionais. Vale lembrar que Uma Cilada Para Roger Rabbit surgiu muito antes da era digital abraçar o cinema, então os traços foram feitos na raça por uma equipe de primeira. O resultado é um colosso técnico, amparado por um roteiro que vai fundo no mistério policial, com os personagens humanos convivendo corriqueiramente com os cartoons.

Mickey e Pernalonga dividiram a cena pela primeira e única vez

Nos bastidores, foi o dedo mágico de Steven Spielberg que fez com que o filme saísse da gaveta. Contratado pela Disney para produzir o longa, e com total liberdade criativa (e também parte dos lucros), ele recrutou Zemeckis e tinha, na visão do chefe do estúdio do Mickey, a missão de recuperar o interesse do público em filmes de animação. Assim como no livro, o filme coloca os protagonistas – o astro Roger Rabbit e o detetive Eddie Valiant, papel de Hoskins – encontrando várias personalidades que viviam e trabalhavam em Hollywood no fim dos anos 40…. mas personalidades do mundo da animação. Os personagens da Disney estavam liberados, mas Spielberg  teve de usar sua considerável influência para fazer com que concorrentes como Warner, Fleischer Studios, King Features e Universal/Walter Lantz emprestassem algumas de suas jóias da coroa, como Pernalonga, Betty Boop, Pica-Pau e Soneca. Quando eles são combinados em cena, o resultado é pura magia.

Aplaudido pela crítica e adorado pelo público, Uma Cilada Para Roger Rabbit se tornou um fenômeno, fechando o ano de 1988 com a medalha de prata na batalha das bilheterias – o topo do pódio foi para Rain Man, com Tom Cruise e Dustin Hoffman. Ainda assim, Roger deixou sua marca na cultura pop contemporânea, abrindo caminho para realizações ainda mais ousadas de seu diretor. Robert Zemeckis emendou o segundo e o terceiro De Volta Para o Futuro depois de Cilada e continuou rompendo as barreiras da tecnologia no cinema, ao mesmo tempo em que nunca desviou o olhar do que realmente importa em um filme: a história sendo contada. Foi assim com A Morte Lhe Cai Bem (1992), e foi assim com louvor com o clássico moderno Forrest Gump (1994). Grande vencedor do Oscar (em um ano que a concorrência tinha o quilate de Pulp Fiction e Um Sonho de Liberdade), foi um triunfo à inventividade e a toda uma geração de diretores que valorizavam tanto a história em suas mãos quanto as ferramentas para criá-la.

Robert Zemeckis volta aos cinemas este ano com Bem-Vindos a Marwen

Zemeckis, por sinal, mostrou-se um diretor de raro ecletismo. Fez ficção científica (Contato, 1997), suspense hitchcockiano (Revelação, 2000) e um drama intimista em grande escala (Náufrago, também em 2000, o homem é uma máquina!), Zemeckis foi tratar de dar um salto na tecnologia de captura de movimento, e na década seguinte criou animações impulsionadas por performances humanas com O Expresso Polar (2004), A Lenda de Beowulf (2007) e Os Fantasmas de Scrooge (2009). O Voo (2012) e A Travessia (2015) foram pouco vistos, mas são um triunfo narrativo, que ele amarrou com seu filme mais esquecível até o momento, o modorrento drama de guerra Aliados (2016). Bem-Vindos a Marwen, que chega no fim do ano, parece recuperar essa mistura de realidade e fantasia que ele equilibrou tão bem três décadas atrás quando fez homens babarem por uma personagem animada cantando num bar com voz aveludada.

É curioso como, apesar do sucesso fenomenal, Uma Cilada para Roger Rabbit terminou como experiência única. Roger, Jessica e o estourado Baby Herman ainda protagonizaram nos anos 90 um trio de curtas de animação, exibidos antes de grandes lançamentos Disney: Querida, Encolhi as Crianças, Dick Tracy e Viagem ao Grande Deserto. Um desentendimento entre Spielberg (dono de metade dos direitos do personagem) e o alto escalão da Disney fez com que o produtor cancelasse a produção de mais quatro curtas. E também pode ter sido o último prego no caixão da continuação da aventura. O roteiro de Roger Rabbit: Toon Platoon foi escrito em 1989 e seria um prólogo, ambientado anos antes do primeiro filme, levando Roger e seu co-protagonista humano, Richie Davenport, para as trincheiras da Segunda Guerra Mundial. A trama começa no aniversário de 18 anos do coelho, que então vive com uma família humana e não faz ideia que é adotado. A revelação faz com que ele pegue a estrada em busca de suas origens, o que o leva primeiro para Hollywood, depois para a Europa tomada pelo nazismo.

A turma de Uma Cilada Para Roger Rabbit, três décadas atrás

Toon Platoon traria mais uma mistura não só de animação com filmagem live action, mas também outra enxurrada de participações especiais, de Mickey e Donald e Pernalonga e Patolino, passando pelo Papa-Léguas (com o Coiote, claro), os Sete Anões (mas sem Branca de Neve),  Pica Pau, Alceu (sem Dentinho), Dumbo e Ligeirinho. Claro que a produção exigiria mais suor por parte de Spielberg, mas por fim ele decidiu enterrar o projeto por não se sentir confortável com o retrato pastelão que o filme fazia dos soldados nazistas – poucos anos depois, Steven dirigiu uma de suas obras-primas, A Lista de Schindler, e seus motivos se tornam totalmente compreensíveis. Assim, Uma Cilada Para Roger Rabbit terminou, ao lado de E.T. – O Extraterrestre e de Os Goonies, como um dos poucos grandes filmes dos anos 80 que não sucumbiu à revisão moderna e jamais ganhou uma continuação, mantendo-se como um pedaço único de entretenimento e um recorte de seu tempo. Hollywood, porém, é ardilosa: em 12 de julho do ano que vem, por exemplo, Tom Cruise e Val Kilmer mostram que ainda sentem a necessidade por velocidade em Top Gun: Maverick. Nada é sagrado.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.