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Feminista e feminino, Mulheres Alteradas é imagem surreal da mulher moderna

Roberto Sadovski

04/07/2018 02h16

Em alguns momentos, fica difícil segurar o fôlego em Mulheres Alteradas, adaptação da HQ criada pela escritora e quadrinista argentina Maitena Burundarena. A câmera começa um movimento perpétuo e passeia pela vida das quatro protagonistas, sem se preocupar com nenhuma pausa e nenhum respiro. É uma ferramenta que tenta reproduzir a leitura ligeira do trabalho da autora portenha, sucesso no Brasil desde que aportou por aqui na virada do milênio, e um modo esperto, criativo e bem humorado de traduzir para o cinema o retrato da tal crise dos 30 na cabeça e na rotina de quatro mulheres. É também a assinatura do diretor Luis Pinheiro, aqui estreando no comando de um longa depois de quebrar fórmulas na TV com a série Lili, a Ex, e também com Samantha!, que está chegando ao Netflix. Mulheres Alteradas é divertido, leve, colorido e, ao contrário do quarteto, escancara-se para o mundo absolutamente sem neuras.

Não foi uma jornada fácil. A produtora Andrea Barata Ribeiro adquiriu os direitos da HQ, mas não tinha uma história a ser contada. Explico. Mulheres Alteradas, publicado no Brasil em cinco álbuns pela Rocco, não traz uma narrativa linear: são recortes da rotina de mulheres do novo século, equilibrando um olhar bem humorado sobre as pressões do cotidiano feminino com questões urgentes sobre independência, amor, trabalho, sexo e os mistérios complexos que torna tarefa impossível decodificá-las. Podia, claro, funcionar na TV, como sketches cômicas curtas, mas dessa forma a obra de Maitena seria apenas traduzida, e não adaptada ou reinterpretada. Foi quando o roteirista Caco Galhardo entrou em cena, ao lado de Pinheiro, com uma ideia bacana para abraçar o universo da escritora como cinema de maneira coerente.

A eterna adolescente Maria Casadevall

Um roteiro básico foi aos poucos sendo desenvolvido como uma trama uniforme, sem perder o DNA dos quadrinhos. Mais ainda: a ideia de um filme encabeçado por quatro mulheres, em tempos de diversidade, combate ferrenho ao assédio e à violência e alguns retrocessos experimentados principalmente entre fãs da cultura pop, fez do filme não só uma comédia bacana, mas o modo perfeito de passar um recado. "Acho importante ver esse filme saindo agora", diz Alessandra Negrini, que em cena interpreta a advogada workaholic Marinati. "Fui convidada para fazer vários outras comédias, mas eram sempre machistas e recusei. Esse é um filme autoral, todo mundo vai se identificar!" O sentimento ecoa nas palavras de Deborah Secco, que vive Keka, assistente de Marinati e às voltas com uma crise aguda em seu casamento. "Acho que toda mulher já se viu como uma das personagens do filme", brinca. "E é importante que isso seja natural, dentro da proposta do Luis."

No caso, o diretor Luis Pinheiro, que arriscou um passo além das fórmulas batidas das comédias brasileiras e conseguiu um filme com muita personalidade. "Não acho que arte e ousadia não possam ser também um trabalho popular", explica. "Mulheres me deu oportunidade de experimentar e de ser um pouco louco, mas tudo obedece à narrativa e ao jeito que eu decidi contar a história." O cineasta, ao lado de seu roteirista, elege o quarteto de protagonistas como as melhores parceiras para criar esse modo frenético de contar a história. "Eu adoro fazer planos-sequência, e acredito que todo mundo embarcou na mesma vibe", continua, apontando as cenas em que a ação é contínua, sem cortes de câmera. "Eu argumentei que o tempo de ensaiar e fazer a cena num take só seria o mesmo para filmar de modo mais convencional, aos pedaços." O elenco aprovou. "Eu queria fazer uma comédia no cinema há tempos, mas não qualquer comédia", completa Deborah. "Aqui a gente teve oportunidade de rodar cenas e bolar soluções que eu nunca tinha visto…. dava pra assustar, mas o desafio é pra isso mesmo!"

Alessandra Negrini: "Recusei várias comédias, todas machistas"

Mulheres Alteradas abraça quatro estereótipos e os apresenta de forma leve. Além da advogada workaholic e da mulher que tenta salvar seu casamento, o filme joga na mistura a mãe neurótica com as crias (Monica Iozzi) e a eterna adolescente presa em um círculo sem fim de festas sem sentido (Maria Casadevall, única que já havia trabalhado com Pinheiro). Em vez de deixar a coisa com os pés no chão, o filme opta por um registro histriônico, quase surreal, que amplifica as situações, potencializa as risadas e aumenta a identificação da plateia (feminina) com as personagens. Não existe espaço aqui para um mergulho na complexidade das relações e nos dilemas mais mundanos das protagonistas, e a opção de Pinheiro por um hiper realismo faz com que suas escolhas narrativas repousem no ponto certo. Falta, talvez, uma interação maior entre as protagonistas (Maria Casadevall só divide a cena com Monia Iozzi) e amarrar a trama principal com mais firmeza. Mas nada que atrapalhe a fluidez das piadas, o visual agradável, as gags bem boladas (Negrini flutuando sobre a cama ao ter um orgasmo é uma sacada bacana) e o clima de "a festa é delas".

Curiosamente, não são só as mulheres que ganham contornos bem definidos. Os personagens masculinos também geram identificação – nem sempre de forma positiva. Primeiro, são todos uns bananas. Tem o "pegador" que esconde ser um fracassado ao posar de Don Juan (Daniel Boaventura), o chefe travado que não compreende o caos instaurado em seus domínios (Mario Gomes) e o marido irritante e insuportável (Sergio Guizé, um dos pontos antos da empreitada). Ou seja: você já conheceu alguém exatamente assim, então não há o que se desculpar. Mas o show é mesmo delas, principalmente quando Mulheres Alteradas, a exemplo do recente Oito Mulheres e Um Segredo e de pérolas modernas como Missão Madrinha de Casamento e A Escolha Perfeita, constrói sua narrativa com personagens femininas com personalidade, sem precisar da escada que são os barbados, aqui transformados em meros coadjuvantes. A vida deve ser mais equilibrada, claro. Mas, no cinema, na arte e na cultura pop, é o momento de a rapaziada entregar o leme para elas.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.