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Porque Spielberg (e o cinema) precisa de outro O Resgate do Soldado Ryan

Roberto Sadovski

27/07/2018 01h43

O Resgate do Soldado Ryan é um dos melhores filmes de guerra da história. O épico dirigido por Steven Spielberg completou 20 anos de seu lançamento essa semana, e já é parte da tapeçaria pop moderna, ajudando a lançar as carreiras de Matt Damon e Vin Diesel, além de começar uma parceria incrível de seu realizador com Tom Hanks. Mesmo sem grandes inovações narrativas, o filme é um exemplar perfeito do conceito "homens numa missão", que rendeu só em seu gênero petardos como Os Doze Condenados e A Ponte do Rio Kwai. Sua beleza, porém, está na execução tecnicamente perfeita, emocionalmente devastadora e visualmente bombástica. Curiosamente, Ryan não foi o único a ser salvo pelo filme: seu maior mérito foi "resgatar" seu próprio diretor.

Não que, ao final do século 20, Steven Spielberg estivesse em um momento atribulado de sua carreira. No final dos anos 90, ele acumulava mais sucesso e mais prestígio do que todos os outros cineastas de sua geração. Em 1993, cinco anos antes de criar o terror nas praias da Normandia, Steven chegou ao auge comercial e artístico com a dose dupla de Jurassic Park e A Lista de Schindler. Nos anos seguintes, o cineasta abriu mais espaço para o empresário, e Spielberg ocupou boa parte do seu tempo tirando do chão o estúdio DreamWorks, uma parceria com David Geffen e Jeffrey Katzenberg. Sua volta aos cinemas, em 1997, fez pouco barulho, apesar do sucesso comercial de O Mundo Perdido e dos aplausos para o pouco visto Amistad. A impressão, no entanto, era que o gênio artístico por trás de Tubarão, Contatos Imediatos do Terceiro Grau, E.T. e Indiana Jones havia concluído seus trabalhos. O mundo podia abrir espaço para uma nova geração. O mundo, porém, estava errado.

Tom Hanks, à frente de uma coleção de novos talentos, lidera o resgate

O roteiro de O Resgate do Soldado Ryan circulava em Hollywood desde 1994, chegando às mãos de Spielberg poucos anos depois. O diretor enxergou no texto de Robert Rodat  um desafio técnico e uma costura narrativa emocional que resultava exatamente no tipo de filme que ele buscava para bater a poeira. "Por anos eu procurava a história certa ambientada na Segunda Guerra Mundial para filmar", disse, pouco antes de a produção começar em 27 de junho de 1997. "Quando Robert (Rodat) escreveu O Resgate do Soldado Ryan, eu encontrei." Antes de as filmagens começarem, porém, Spielberg reuniu parte de seu elenco, incluindo Barry Pepper, Vin Diesel, Ed Burns, Adam Goldberg, Giovanni Ribisi e o próprio Tom Hanks, para dez dias de treinamento militar intenso, não só para familiarizar o grupo com procedimentos militares a ser usados na filmagem, mas também para construir um senso de camaradagem. Não por acaso, Matt Damon, o próprio soldado Ryan, foi deixado de fora do treinamento, para que o grupo inconscientemente construísse um certo ressentimento contra ele.

O Resgate do Soldado Ryan não deixou o mundo indiferente. Foi a maior bilheteria de 1998 nos Estados Unidos (com 217 milhões de dólares em caixa) e a segunda mundial (482 milhões), coroando sua trajetória com cinco dos onze Oscar a que foi indicado – menos o de melhor filme que, em uma das maiores injustiças da premiação, foi entregue, por total lobby de Harvey Weinstein, ao drama Shakespeare Apaixonado. Bummer. Duas décadas depois, não há muita dúvida sobre qual filme ainda habita o ar rarefeito da cultura pop, com Ryan servindo de inspiração e referência para o cinema de guerra dos anos seguintes, com sua explosão de violência amarrada com uma história simples, emocionante e avassaladora. O nome de Steven Spielberg voltou a ser sinônimo do melhor cinema, e ele emendou o filme com uma sequência matadora de trabalhos belíssimos, voltando a flertar com a ficção científica (A.I. – Inteligência Artificial, Minority Report, Guerra dos Mundos), com dramas históricos (Munique, Lincoln, o recente The Post) e com filme tão ecléticos quanto carregados de sua personalidade (Prenda-me Se For Capaz, O Terminal, As Aventuras de Tintin).

O terror caótico do desembarque na Normandia

Desde Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal, entretanto, que falta um certo brilho à sua filmografia. Spielberg nunca perdeu a mão, e continua criando à perfeição pedaços de fantasia que usam a tecnologia do cinema para contar boas histórias, bem como dramas de profundidade emocional inquestionável em que o roteiro ergue-se acima de qualquer pirotecnia. O Resgate do Soldado Ryan, porém, foi a última vez em que ele amarrou os dois pólos em uma trama adulta e envolvente, sem nunca deixar de ser um espetáculo cinematográfico capaz de mobilizar um público cada vez mais pulverizado e encaixotado em nichos. Jogador Nº 1 foi sua tentativa deste ano de entrar no jogo do novo cinemão pop, ao lado de Vingadores: Guerra Infinita, Han Solo – Uma História Star Wars ou Jurassic World: Reino Ameaçado. O tempo vai julgar a longevidade da empreitada, mas é certo que sua aventura virtual não deixou rastros nem gerou discussões. Simplesmente foi.

Não que, a essa altura de sua carreira, e aos 72 anos de idade, Steven Spielberg precise provar alguma coisa – qualquer coisa! – a um público que há décadas lhe agradece por alimentar seus sonhos, acalentar seu coração e bombear sua adrenalina. Idade nunca foi problema. George Miller criou seu Mad Max: Estrada da Fúria aos 70 anos com vigor de adolescente. Clint Eastwood continua dirigindo (e produzindo, e atuando!) aos 88 anos (The Mule é o próximo). Spielberg tem sua agenda cheia, com um quinto Indiana Jones sendo roteirizado, o remake de Amor Sublime Amor em desenvolvimento, e o drama político-religioso The Kidnapping of Edgardo Mortara em sua mira. Não sei se alguns destes projetos será o projeto…. Mas  tenho certeza que um cineasta com sangue nos olhos como Steven Spielberg ainda tem em si mais um filmaço capaz de eletrizar, chocar e emocionar o mundo. O cinema, que para o bem ou para o mal também tem tropeçado para encontrar esse equilíbrio de reflexão e espetáculo mais vezes, agradece.

Steven Spielberg em mais um dia de trabalho puxado

O Resgate do Soldado Ryan, para quem não teve vida nas duas décadas, segue um grupo de soldados que penetra fundo na França ocupada em busca de Ryan – seus três irmãos foram mortos em combate, e o governo americano fez de sua volta para casa prioridade número um. Spielberg começa o filme com os dois pés no peito, com uma sequência de vinte minutos retratando com crueza e violência o desembarque das forças aliadas nas praias da Normandia, com soldados alemães protegidos em bunkers pesados despejando uma chuva de artilharia na areia. Sangue se confunde com a água do mar. O zumbido de balas cortando o ar é ensurdecedor. Explosões de morteiro deixam soldados carregando seus próprios membros amputados. Em meio ao balé de caos orquestrado por Spielberg, ele aos poucos desfralda sua trama e apresenta seus protagonistas. É um modo brilhante de arrastar a plateia direto para o horror da guerra, mostrando que o diretor não queria uma aventura patriótica e ufanista, não queria um filme de ação com mocinhos, bandidos e um final feliz: queria mostrar o que um conflito tão extenso faz com a mente de um homem comum. Embora esse início seja uma pedrada, o golpe de misericórdia emocional foi no clímax, depois de mais de duas horas acompanhando estes homens, quando o Capitão Miller de Tom Hanks, mortalmente ferido, agarra Ryan e balbucia, em seu último fôlego: "Faça por merecer". Faça por merecer.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.