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Por que os vilões das HQs podem funcionar longe dos super-heróis no cinema

Roberto Sadovski

07/08/2018 01h04

Venom será o primeiro a chegar. Pouco depois será a vez de Coringa. Ainda no papel estão Morbius, o Vampiro Vivo e Kraven, o Caçador. Arlequina é a protagonista de Birds of Prey. Dwayne Johnson mal pode esperar para se tornar Adão Negro. Todos filmes baseados em personagens de quadrinhos da Marvel ou da DC. Todos com super-vilões no papel principal. Batman? Nem sinal. Homem-Aranha? Esse nem pode aparecer para a festa. Quando essa leva de aventuras encabeçadas por vilões começou a dar as caras, eu reagi como qualquer fã de gibis de longa data: achei um absurdo, um beco sem saída criativo que poderia apontar para o começo do fim de quase duas décadas em que os super-heróis dos quadrinhos dominaram o cinema. Certo? Bom, mais ou menos… E se essa fornada de filmes observando o lado sombrio das HQs significasse exatamente o contrário? E se fosse uma forma de ampliar o escopo, aumentar o público e oxigenar um "gênero" que ainda precisa de aspas? Pensei em tudo isso. E pensei em Hannibal Lecter.

O Silêncio dos Inocentes, de 1991, foi um dos filmes fundamentais para minha formação como fã de cinema. O diretor Jonathan Demme conseguir unir uma de minhas paixões, os filmes de terror, com uma trama adulta e intensa, capaz de sair das amarras do gênero e abraçar o mainstream de uma maneira que seus realizadores, aposto, jamais esperaram. O Silêncio dos Inocentes ganhou, entre outros, o Oscar de melhor filme, consagrou Jodie Foster como a mais poderosa atriz de sua geração e ressuscitou a cambaleante carreira de Anthony Hopkins. Seu personagem, o canibal Hannibal Lecter, tornou-se parte do tecido da cultura pop, vendo seu alcance e influência ultrapassar as barreiras do filme que o consagrou. Lecter não era o protagonista, mas terminou como tal uma década depois em Hannibal, de Ridley Scott. E continuou como presença dominante em Dragão Vermelho (2002), Hannibal – A Origem do Mal (2006) e na excelente série de TV que colocou o ator Mads Mikkelsen como o psiquiatra com tendências canibais.

De vilão, Hannibal Lecter se tornou protagonista de sua história

Hannibal Lecter, por fim, não seria tão diferente do Coringa. Ou do Adão Negro. Ou mesmo de Venom. É um vilão, o personagem que funciona como gatilho para a jornada do herói, sendo transformado em protagonista de outra história.  É nesse ponto que dar um passo para trás e enxergar a coisa à distância é a melhor solução. Cinema e histórias em quadrinhos são mídias absurdamente diferentes. Muitas vezes, o fã de HQs espera que um filme traduzindo os personagens do papel em live action siga uma série de regras, muitas vezes estabelecidas por décadas em seu material de origem. Mas não há nada que impeça que o cinema (ou qualquer outra mídia) reinvente esses mesmos personagens com uma outra visão, para um outro público, de uma outra maneira. Christopher Nolan nunca havia lido uma HQ do Batman, o que não o impediu de reinventar o personagem em sua trilogia O Cavaleiro das Trevas. Bryan Singer não tinha o menor interesse em adultos com poderes num combate sem sentido, mas entendeu algumas entrelinhas em X-Men e deu a partida no filme de super-herói moderno.

O que nos leva ao próximo ponto. Embora exista hoje essa tendência, comercial e criativa, em embalar propriedades intelectuais no cinema em "universos", não existe nada que impeça um diretor de reinterpretar um personagem em uma aventura solo, sem precisar carregar uma bagagem pesada. É possível que Venom possa terminar como um bom filme, com sua origem reescrita do zero e reposicionada longe das aventuras do Homem-Aranha (embora o trailer encha meu coração de pavor). Morbius e Kraven, também oriundos da galeria de vilões do Cabeça de Teia, podem ser reinterpretados com seu próprio arco dramático, sem a menor conexão com os quadrinhos, para que funcionem no cinema como aventuras isoladas. Birds of Prey e Adão Negro estão em outra categoria, ainda como parte de um suposto Universo Estendido DC (que eu acredito estar morto desde o fiasco Liga da Justiça). Coringa é um caso mais complicado, mas ainda é cedo para ver o que sua equipe criativa tem nas mangas.

Kraven, o Caçador está na fila para também ganhar um filme-sem-heróis

Os filmes baseados em quadrinhos não existem para agradar aos fãs de quadrinhos. Muito pelo contrário: eles podem ser os primeiros na fila em sua estreia, mas o sucesso ou fracasso de uma produção de cinema depende do quanto uma propriedade intelectual vai além de seu público-alvo primário. Vingadores: Guerra Infinita é um colosso de 2 bilhões de dólares, mas é certo que a esmagadora maioria dos fãs do Homem de Ferro, do Thor ou do Capitão América jamais tenham aberto um gibi na vida. São personagens que deixaram há pelo menos uma década de fazer parte de um nicho, de ser propriedade dos iniciados. O mesmo vale para o fracasso de Liga da Justiça. Supondo que apenas os fãs mais hardcore dos gibis tenha ido ao cinema, já que o filme obviamente não se conectou com mais ninguém, não é difícil elencar os motivos para seu fracasso monumental. Um filme é só um filme, e precisa funcionar como tal. Mulher-Gato não fracassou por se distanciar tanto do cânone do Batman: ele naufragou por ser uma experiência cinematográfica horrorosa! Se o resultado deixa a plateia empolgada, pouco importa o universo compartilhado, as referências aos gibis ou a ausência de heróis.

Dito isso, ainda está difícil olhar para Venom e acreditar que daquele mato sai coelho…..

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.