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Enfim, uma boa notícia: sem parar desde 1981, Woody Allen vai tirar férias

Roberto Sadovski

30/08/2018 05h38

Aos 82 anos, o lendário Woody Allen finalmente vai colocar os pés para o alto e dar um tempo no trabalho. O diretor de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa e A Rosa Púrpura do Cairo é um dos maiores workaholics do cinema, lançando um filme por ano desde o começo dos anos 80 – às vezes dois, o caso de A Era do Rádio e Setembro, ambos de 1987. Talvez seja a idade, talvez seja a atenção recente em torno de seu nome, por motivos nem de longe relacionados ao cinema. O fato é que Allen lançou Roda-Gigante ano passado e tem um novo filme, A Rainy Day in New York, na lata. Produzido pela Amazon, a comédia não tem data de estreia e, ironicamente, colocou o autor no centro de mais uma avalanche causada por alegações de abuso, o que fez com que vários atores, inclusive do novo filme, declarassem que não trabalhariam mais com ele.

Richard Johnson, colunista do site Page Six, conversou com produtores ligados a Allen e a palavra que o melhor descreve agora é "tóxico". Seu contrato com a Amazon previa mais três longas depois de Rainy Day, mas um agente em Hollywood disse, no início do ano, que o gigante de vendas (e entretenimento) preferia pagar uma multa pesada ao diretor do que bancar a parceria. O IMDb não lista lançamentos de Allen para 2019. Existe um projeto para o ano seguinte, mas aparentemente ele não consegue assegurar nenhum financiamento para esse próximo trabalho. "Woody sempre trabalhou com ótimos atores", disse um produtor ao Page Six. "Eles trabalhavam pelo mínimo do sindicato só pelo prestígio de ter um de seus filmes no currículo." Isso não existe mais. É mais uma carreira estremecendo por pressão do movimento #MeToo.

Allen com Selena Gomez no set de A Rainy Day in New York

Ironicamente, todo esse holofote em cima dos casos de abuso e assédio em Hollywood tiveram como ponto de partida um artigo escrito pelo filho de Allen, Ronan Farrow, que expôs o comportamento grotesco do produtor Harvey Weinstein, causando um efeito dominó de denúncias e o esfarelamento do poder de muitos nomes proeminentes do cinema mundial. O caso de Woody é mais antigo e mais complexo. Ele foi acusado de abusar sua filha, Dylan Farrow, 26 anos atrás. O suposto crime nunca foi denunciado formalmente, Allen continuou trabalhando, mas o clima atual em Hollywood fez com que as acusações ressurgissem, deixando o cineasta mais uma vez no centro de uma polêmica perigosa – o que piorou depois de um juiz designado para o caso comentar que o comportamento de Allen com a filha era "gravemente inapropriado".

Foi a fagulha em palha seca. Os atores Timothee Chalamet, Rebecca Hall e Griffin Newman doaram seus salários por A Rainy Day in New York para organizações que cuidam de vítimas de abuso sexual. Hall, que trabalhou com o diretor em Vicky Cristina Barcelona, escreveu em seu Instagram que tinha se arrependido de fazer o filme. Michael Caine, que ganhou o Oscar de melhor ator coadjuvante por Hannah e Suas Irmãs, também foi a público dizer que jamais trabalharia com Allen novamente. Outro fator é que seus filmes dão prestígio, mas raramente faturam nas bilheterias. Meia-Noite em Paris é sua maior bilheteria, encostando em 150 milhões de dólares em todo o mundo – nos Estados Unidos, a média de seu faturamento é pouco mais de 13 milhões por filme. Como o cinema hoje se divide grosseiramente entre blockbusters gigantes e filmes mega independentes, alguém que filma todos os anos com orçamentos médios como Woody Allen vê o financiamento sumir. Ele buscou alternativas na Europa. Chegou a cogitar rodar no Rio de Janeiro. Mas o mundo mudou. A assessoria do diretor, claro, nega tudo isso.

O autor ao lado de Diane Keaton em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa

O fato é que o mundo precisa de um respiro de Woody Allen. Seu último filme realmente memorável foi justamente Meia-Noite em Paris. Antes disso era possível pincelar um Vicky Cristina Barcelona aqui, um Match Point ali. Desconstruindo Harry, talvez seu último trabalho de relevo, foi lançado há mais de duas décadas. Ninguém, honestamente, dá a mínima para Café Society ou Magia ao Luar. Obviamente não estou dizendo que ele só fez filmes ruins recentemente. Poucas e Boas é uma pérola. Blue Jasmine tem seus momentos. Mas é preciso rebobinar algumas décadas para reencontrar o autor que entendia a condição humana como ninguém, capaz de extrair beleza e melancolia, risos e lágrimas, de uma coleção de obras-primas que o tempo não arranha. Cada um tem seu Woody Allen favorito (eu adoro a maluquice de Zelig, o puro prazer de Todos Dizem Eu Te Amo, a beleza de Manhattan), e sua obra-prima incontestável ainda é Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, que muitos cinéfilos conseguem citar de cor. Se as férias forçadas se transformarem numa aposentadoria, Allen fez sua parte para deixar o mundo melhor. Mesmo que ele pareça sair de cena pela porta dos fundos.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.