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Com ousadia, A Maldição da Residência Hill reinventa o clássico do terror

Roberto Sadovski

16/10/2018 04h27

A Maldição da Residência Hill é uma grande história sobre casas mal assombradas que consegue fugir de quase todos os clichês do gênero. É uma série de terror que não economiza nos sustos, mas também não foge de uma caracterização de personagens complexa, oferecendo uma narrativa rica em detalhes, em imagens apavorantes, em reviravoltas surpreendentes e em uma atmosfera sufocante mesmo em seus (poucos) momentos iluminados. Adaptar o romance clássico de Shirley Jackson já seria uma decisão ousada, mas o mentor da série, o diretor Mike Flanagan, foi além da tradução literal, optando por desconstruir o material original e criar sua própria interpretação, que abraça elementos específicos do livro de 1959 mas termina com uma reimaginação com vida própria.

O sucesso da série está em não reinventar o modo de criar uma obra de terror, e sim abraçar a nostalgia, usando-a como ferramenta para construir um tom de constante desespero. Flanagan não está interessado em sustos ligeiros – embora eles surjam nos momentos certos -, e sim em mostrar como os eventos do mais puro terror criam traumas que se arrastam por toda uma vida. De certa forma, A Maldição da Residência Hill não foge do terror psicológico, mas deixa claro desde o começo que sua origem é sobrenatural. Como um parasita, o medo agarra-se no grupo de protagonistas e, ao longo de duas décadas, vai revelando seu efeito devastador. Em teoria, desenvolver uma história assim funciona melhor em uma trama com duas horas. Mas o formato da Netflix, que estende a série por dez episódios, dão a Flanagam o lastro para ele tecer sua narrativa sem pressa, injetando no público a mesma sensação de decomposição lenta experimentada por seus personagens.

Carla Gugino, quase etérea na escadaria da residência Hill

E são eles o grande trunfo nas mãos do diretor. Ao concentrar a história na família Crain em dois momentos no tempo (representados na tela por um simples "antes" e "agora"), Flanagan pega as fontes da força sobrenatural do livro de Shirley Jackson e lhes dá substância: elas não são a metáfora para o terror, e sim as condutoras da trama. Duas décadas atrás, Hugh e Olivia Crain (Henry Thomas e Carla Gugino) se mudaram com a prole de cinco filhos para a Residência Hill. A ideia era passar o verão no lugar, com o intuito de reformar e vender a mansão – Hugh é o faz-tudo; Olivia, a arquiteta. Mas logo fica claro que a casa abriga forças que vão desestruturar a família, culminando com Hugh, em desespero, fugindo com os cinco filhos, deixando a mulher, uma aparente suicida, para trás. É o evento que vai assombrar os Crain para o resto de seus dias.

Vinte anos depois, eles seguiram caminhos distintos. Steven (Michiel Huisman) tornou-se escritor de sucesso, baseando sua carreira justamente no livro em que narrou sua infância – e o suicídio traumático de sua mãe – na Residência Hill. Cético, ele seguiu escrevendo livros em que conta histórias de fantasmas de terceiros, sem nunca acreditar no paranormal. Já Shirley (Elizabeth Reaser) é dona de uma funerária, e tenta manter-se como pilar irremovível da família, abrigando em seu teto Theo (Kate Siegel), psicóloga infantil e dona de dons sensitivos. Os últimos elos, e os mais frágeis, são os gêmeos Luke (Oliver Jackson-Cohen), viciado em heroína, que foi como ele conseguiu lidar com os traumas de infância, e Nell (Victoria Pedretti), que nunca chacoalhou os fantasmas do passado e surge como gatilho para a família, tragicamente, se reunir.

Henry Thomas não parece ter histórias agradáveis para contar

Mike Flanagan, que dirigiu os ótimos O Espelho e Hush: A Morte Ouve, usa o formato seriado à perfeição, construindo uma narrativa complexa em que presente e passado se misturam, e o quadro completo aos poucos vai sendo revelado. Os eventos que causaram o suicídio de Olivia e a ruptura na família são deixados nas sombras pela maior parte da série, com cada episódio concentrando-se nos dramas individuais dos Crain, ao mesmo tempo em que desenham o trauma compartilhado pelos irmãos. Embora seja uma opção inteligente, o ritmo mais lento também tem sua cota de problemas, com Flanagan usando alguns sustos ligeiros repetidamente para não resumir sua trama à exposição: conhecemos melhor um personagem e a tensão crescente é quebrada com o surgimento de um fantasma. A fórmula poderia se exaurir rapidamente, se não fosse a habilidade do diretor em construir personagens complexos e intrigantes, tornando impossível não querer juntar as peças e recriar o passado de cada um.

Os últimos episódios aceleram a narrativa e dão mais ênfase a Hugh Crain (interpretado por Timothy Hutton no presente), um homem demolido pela tragédia na Residência Hill, que mantém seus segredos enterrados tão profundamente que o preço foi o amor de seus filhos e, por pouco, sua sanidade. Hutton brilha em particular no sexto episódio, "Duas Tempestades", talvez o mais brilhante de toda a série, quando finalmente a família se reúne e toda a mágoa, dor e sofrimento vem à tona, ao lado de um séquito não menos surpreendente de espíritos. Tecnicamente, o episódio é construído ao amarrar intermináveis planos-sequência, que se alternam em presente e passado, dando a dimensão do cuidado com a produção e do talento do grupo de atores reunido por Flanagan. Não há espaço para gordura aqui: cada imagem, cada simbolismo, cada frase e cada susto obedece à narrativa.

Michiel Huisman e Tomothy Hutton encontram crias do além

A Maldição da Residência Hill ainda traz alguns dos traços mais incômodos das produções Netflix, como o excesso de explicações e o ritmo por vezes arrastado. Mas compensa com a beleza de sua produção, com habilidade narrativa, com personagens complexos e com elegância em sua condução. Em outras palavras, os efeitos são discretos, a violência nunca apela para o gore, o tom é familiar o suficiente para o público mergulhar na trama, mas original o bastante para se destacar entre outras séries de terror como American Horror Story, The Walking Dead e Castle Rock. Não tem o clima gótico de Desafio do Além, primeira adaptação do livro de Shirley Jackson, que Robert Wise dirigiu em 1963. Mas está anos-luz à frente de A Casa Amaldiçoada, versão involuntariamente cômica que em 1999 colocou Liam Neeson e Catherine Zeta-Jones numa mansão com cara de cenário. Aqui, pode acreditar, os sustos funcionam.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.