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O Doutrinador foge da mensagem política e se firma como cinema de ação

Roberto Sadovski

30/10/2018 02h58

O Doutrinador é sobre um vigilante que mata políticos corruptos. Para ele, não importa o cargo, o partido ou a posição: saiu da linha, provavelmente se torna um alvo. É curioso, portanto, observar como a aventura, adaptada de uma série em quadrinhos, vai se comportar nos cinemas estreando menos de uma semana depois do encerramento de uma das disputas eleitorais mais acirradas da história recente do Brasil – principalmente quando o filme se passa durante uma campanha presidencial, o que aumenta a voltagem das comparações! Apesar de O Doutrinador ser entretenimento puro, é quase impossível encarar a aventura com um olhar que não seja um espelho de nossa realidade. Quase.

"Claro que O Doutrinador é entretenimento", afirma Kiko Pissolato, que assume aqui o papel do protagonista. "Mas é claro também que ele provoca uma discussão, e o papel de toda obra de arte é justamente provocar essa reflexão – depende de cada um absorver de sua forma." Tainá Medina, no papel da hacker Nina, corrobora o parceiro: "O filme mostra a certa altura um texto justamente sobre a responsabilidade acerca da corrupção, uma responsabilidade que precisa ser assumida por nós mesmos". O diretor Gustavo Bonafé engrossa o coro. "O Doutrinador tem como primeira função divertir", diz. "Ele faz um convite à reflexão, e esse é o limite de nossa contribuição para o assunto. Não é um filme político, é entretenimento."

Eduardo Moscovis é político e corrupto em O Doutrinador

A aventura, que ano que vem é estendida como uma série para a TV, surge quase como uma anomalia na cinematografia brasileira, em que boa parte dos produtos audiovisuais contemporâneos vem acompanhada de um "lado", de um posicionamento político ou ideológico claro. O Doutrinador não coloca como missão cutucar essa ferida, assumindo um lugar similar ao de tantos filmes do gênero em que a história, os personagens e a construção do mundo vêm em primeiro lugar. "O projeto já começou com o ineditismo de adaptar uma HQ moderna de ação", continua Bonafé. "Não havia receio, e sim o desafio em fazer com que um personagem assim se encaixasse no universo brasileiro, geralmente retratado no cinema de forma realista."

A opção dos realizadores foi a mais sensata. O Doutrinador é ambientado no Brasil, mas um Brasil hiper realista, em uma cidade fictícia que traz referências o suficiente para a plateia fazer uma conexão emocional e geográfica, mas que é distante o bastante para inserir de forma orgânica um vigilante que mistura Batman, Demolidor e o Justiceiro. Em um mundo em que super-heróis das HQs dominam os multiplexes em produções milionárias, a maior dificuldade foi criar um produto que pudesse ser saboreado com a mesma empolgação. "Obviamente não temos os mesmos recursos que esse tipo de blockbuster", continua a produtora Renata Rezende. "Então a gente se afastou de cenas que talvez não pudéssemos produzir aqui, deixando no roteiro tudo que nos deixasse o mais seguro possível em relação a execução."

Kiko Pissolato prepara-se para mais uma cena de ação em um Brasil quase real

Como resultado, O Doutrinador é uma ótima surpresa, um filme de ação sólido que entende seus pontos fracos e abraça seu gênero sem o menor pudor. É uma aventura que serve não só como ponto de partida para um novo tipo de cinema feito no Brasil, como também um filme que usa uma linguagem universal para contar uma história simples e bem amarrada. No centro de tudo está Kiko Passolato, que ganha o papel de sua vida como o policial que, depois de uma tragédia pessoal, decide fazer justiça com as próprias mãos. O ator se entregou aos desafios físicos do papel (ele fez quase todas as cenas de ação) e não deixou seu conflito emocional de lado. O Doutrinador mata impiedosamente (os efeitos de maquiagem, assinados por Rodrigo Aragão, são sangrentos e eficientes), mas deixa claro os motivos, mesmo extremos, que o levaram a levar uma vida dupla.

Claro, já vimos esse filme antes dezenas de vezes, mas nenhuma delas trazia esse tempero nacional, que diminui a distância e alimenta a empatia. Até porque a história, mesmo com uma ou outra barriga (acredito que personagens menos esboçados ganhem vulto na versão para a TV, o que não justifica algumas lacunas no texto do filme), é bem amarrada, desenhando bem as motivações do anti-herói e também a jornada do vilão principal, um político seboso, oportunista, manipulador, populista e mentiroso que surge como uma ameaça maior do que tiros ou explosões. Sua origem nos quadrinhos trazia mais elementos fantásticos e super humanos; aqui, a trama envolve roubo de dinheiro público, balas perdidas, falência da saúde pública e corrupção em altíssimo escalão. Senti falta de um antagonista físico para o herói, um oposto ideológico que compõe a fórmula para a jornada do herói executada com sucesso há dez anos, por exemplo, nos filmes da Marvel. Mas definitivamente são pecados pequenos em uma experiência cinematográfica empolgante e enxuta.

Esse aí morreu sorrindo com a Bíblia na mão!

E pensar que tudo começou com um logo, com o símbolo do personagem, primeiro elemento criado pelo publicitário, roteirista e desenhista Luciano Cunha dez anos atrás quando teve a ideia do personagem. "Os heróis dos quadrinhos que eu curtia eram sempre identificados com um símbolo forte", lembra. "Eu não enxergava isso nas HQs nacionais, e quando O Doutrinador começou a tomar forma no papel eu coloquei esse elemento em destaque." Essa imagem, uma representação gráfica da máscara usada pelo herói, terminou sendo uma das peças principais na campanha do filme, e o elemento visual mais reconhecível do herói. "O público desse gênero é muito crítico e muito antenado no estilo em que ele é feito em todo o mundo", explica Renata. "Estamos muito curiosos em ver como ele será recebido." Gustavo Bonafé, que agora finaliza a série para a TV, acredita que O Doutrinador é uma porta aberta para novos projetos que abracem um estilo mais pop. "E eu não imaginava que fosse tão divertido de fazer", conclui. "Eu me surpreendi com as cenas de ação, e no dia em que só filmávamos diálogos, a equipe tinha de me aturar lamentando por não ter nenhum tiro."

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.