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O ótimo reboot de She-Ra prova que nerd velho não sabe de nada

Roberto Sadovski

27/11/2018 06h57

As estatísticas do IMDb, o Internet Movie Data Base, comprovam: a animação She-Ra e as Princesas do Poder tem alto índice de rejeição por homens com mais de 30 anos. Agora tente reler e não gargalhar: marmanjada com uma pilha de boletos pra pagar não curtiu um desenho que mira o público infanto-juvenil. Entre mulheres de 18 a 29 anos, a média passaria de ano com louvor. Os dados não têm nada de oficiais, mas servem para comprovar aquela teoria levantada desde que o reboot de She-Ra (e também o de ThunderCats, que estreia ano que vem) foi anunciado: nerd velho tem por hábito abraçar produtos que nunca apontaram para ele em primeiro lugar, mas usa a única coisa que lhe resta, a ponta dos dedos, para tentar diminuir um produto que não lhe estimula a libido (eu ia escrever "nostalgia", mas vamos dar nome aos bois).

Um dos motivos é o novo design da heroína. Aquele visual hipersexualizado dos anos 80, com as personagens femininas cheias de curvas, usando shortinho e minissaia, deu lugar a um "elenco" normal e diverso, representando bem melhor o mundo em torno da petizada que fatalmente vai devorar a série. A própria She-Ra perdeu a roupa colada e ganhou uma armadura, com um short mais prático sobre a saia. É o visual clássico, sem dúvida, atualizado com bom gosto – e esse cuidado se estende a todos os personagens. Não é, afinal, um desenho para nerds babões desesperados por alguma conexão com o passado. Talvez o problema, para essa turma, é que She-Ra deixou de ser uma criação secundária – ela foi concebida como spin off do fenômeno He-Man and the Masters of the Universe – para ser o centro das atenções. Não existe aqui sequer sugestão de seu irmão fortão: quem salva o dia são mesmo as princesas.

Cintilante, Arqueiro e Adora são o centro da narrativa de She-Ra

A ideia está alinhada com a visão da desenhista Noelle Stevenson, que assumiu a nova She-Ra como showrunner e tratou de colocar um time de roteiristas, todas mulheres, para tocar o barco. O resultado é um desenho de ação com uma sensibilidade diferente, em que as relações entre as diferentes personagens – em especial a cadete Adora e sua amiga, Felina – tem tanta ênfase quanto as cenas de combate. Aliás, vale tirar logo o bode da sala: She-Ra, a dos anos 80, era uma animação tão ruim quanto seus pares. He-Man, ThunderCats, Silver Hawks, M.A.S.K. eram fruto de um pensamento corporativo com o único objetivo de vender brinquedos. Os roteiros das séries eram pobres, não havia nenhum desenvolvimento de personagem, nenhum arco dramático, nenhuma evolução narrativa. A repetição era a ordem do dia. Ao menos algumas animações contemporâneas, como G.I. Joe e Transformers, ainda ensaiavam algum estofo evolutivo, mesmo quando o objetivo claro era vender bonequinhos.

Não há absolutamente nada errado em aliar uma animação com outros produtos. Esse aspecto "colecionável" foi justamente o que manteve o interesse nesse universo gerado por Masters of the Universe, e um dos motivos para She-Ra ganhar um reboot. O bacana é que o cuidado com o texto é exemplar. Em treze episódios, Noelle e sua equipe criam de fato uma trama redondinha, traçando a jornada do herói clássica com Adora no centro de tudo. Sem lembranças de seu passado, ela é treinada como cadete da maligna Horda, acreditando que as princesas do mundo de Etheria representam uma força tirânica. Quando a verdade lhe é revelada, ela tem de lidar com o fato de que viveu uma mentira e precisa tomar as rédeas de sua vida, mesmo que para isso tenha de se tornar antagonista de sua melhor amiga, Felina. É bonitinho, empolga e emociona. Para seu público-alvo, então, é a chance de ver meninas como elas sendo corajosas e heroicas, ao mesmo tempo em que entendem que fazer a coisa certa nem sempre é a coisa mais fácil. É um modelo poderoso para crianças, uma animação que aborda temas atuais e importantes sem perder o verniz de uma aventura colorida e empolgante.

Felina vive uma relação de amor e ódio com Adora

Não que isso vá frear a fúria abilolada de uma rapaziada que enxerga a She-Ra dos anos 80 como uma especie de Santo Graal, uma animação "clássica" que não podia ser tocada. Fatos são fatos: era um desenho velho, que envelheceu pior ainda, e os entusiastas de aventuras de espada e feitiçaria, com uma boa dose de fantasia e ficção científica, tinham de celebrar um versão atualizada tão honesta e alinhada com o mundo em que vivemos. O protagonismo feminino é um bônus bem vindo: afinal, estamos falando de um desenho em que a heroína balança uma espada em um cavalo enfeitado com as cores do arco-íris, e as posições de poder – regentes, diplomatas e guerreiras – são ocupadas por elas. Há espaço para romance LGBT (duas princesas, Netossa e Spinnerella, são claramente apaixonadas), o Arqueiro tem dois pais – e uma queda pelo marinheiro Falcão do Mar. Mas em nenhum momento a série transforma seu sub texto em uma bandeira: os personagens são assim e a aventura segue. Ponto.

Se existe uma crítica a She-Ra e as Princesas do Poder é que as proverbiais princesas mereciam ter uma personalidade mais desenhada. É compreensível que a primeira temporada concentre-se no trio principal formado por Adora/She-Ra, Arqueiro e a empolgada Cintilante. Mas seria bacana entender melhor como funciona o equilíbrio de poder entre as princesas que governam e protegem Etheria, até para criar uma conexão maior para o clímax da série. Em compensação, os vilões são um barato. Felina é movida por frustração genuína ao não entender a revelação experimentada por Adora. Sombria não esconde sua predileção por Adora, e sua obsessão em "resgatar" a antiga pupila sugere um sentimento quase maternal por trás das maquinações malignas. Scorpia, que conta já ter sido uma princesa, revela total falta de arrependimento à decisão de sua família de virar as costas para Etheria e juntar-se ao conquistador Hordak – ele mesmo redesenhado como um vilão genuinamente ameaçador. Em tempos sombrios, em que caminhamos por um imenso cenário cinzento, animações como She-Ra e as Princesas do Poder mostram o poder de uma boa história e a imersão que elas são capazes de conjurar. Já os nerds que ainda choram por sua "infância estragada", a boa notícia é que She-Ra original também está disponível na Netflix. É por sua conta e risco.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.