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Bohemian Rhapsody no Globo de Ouro: Apertem os cintos, o diretor sumiu!

Roberto Sadovski

07/01/2019 04h35

Já na reta final da festa do Globo de Ouro, realizada na noite de domingo em Los Angeles, o ator Rami Malek foi premiado como melhor ator em drama por seu trabalho como Freddie Mercury na cinebiografia Bohemian Rhapsody. Se havia uma categoria merecida para o filme que se tornou sucesso nessa virada de ano, foi essa. Momentos depois, a surpresa: o "filme do Queen" foi escolhido melhor drama, desbancando produções infinitamente superiores como Infiltrado na Klan, Se a Rua Beale Falasse e, claro, Pantera Negra. Vai entender. A maior surpresa, porém, ficou por conta dos agradecimentos: nem Malek, muito menos os produtores de Bohemian Rhapsody, incluíram em seus discursos o diretor do filme, Bryan Singer. Pegou mal.

Até porque um filme não se dirige sozinho, e foi a visão de Singer, materializada em uma produção planejada para acertar em cheio na emoção da plateia, que colocou os Globos de Ouro nas mãos de seu protagonista e de seus produtores. Mas a Hollywood do século 21 sobrevive em um equilíbrio tênue de compromisso político, preocupação social e temor da saraivada de tweets que podem quebrar as pernas até de um vencedor. Na avaliação do estúdio responsável por Bohemian Rhapsody, não importa que o filme já tenha faturado impressionantes 744 milhões de dólares: o nome de Bryan Singer é tóxico, e qualquer menção a ele é velada. Um filme não se dirige sozinho. Mas, nesse caso, os homens que mandam lhe cobriram com um manto da invisibilidade.

76th ANNUAL GOLDEN GLOBE AWARDS -- Pictured: Rami Malek, winner of Best Actor - Motion Picture, Drama at the 76th Annual Golden Globe Awards held at the Beverly Hilton Hotel on January 6, 2019 -- (Photo by: Paul Drinkwater/NBC)

Rami Malek e seu merecido Globo de Ouro por Bohemian Rhapsody (Paul Drinkwater/NBC)

Motivos não faltaram. Em dezembro de 2017, Bryan Singer foi acusado de abuso sexual por Cesar Sanchez-Guzman, que diz ter sofrido o ataque pelo diretor em 2003, quando ele tinha 17 anos. Singer negou a acusação, registrada três dias depois de ele ser demitido como diretor de Bohemian Rhapsody – o caso segue na justiça, com o cineasta disposto a se defender até o fim. Foi a segunda vez que Singer enfrentou um processo com o mesmo vulto: em 2014, pouco antes de começar a divulgação de X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido, ele foi acusado de abuso sexual por Michael Egan, que alegou ter sido violentado pelo diretor em 1999. Singer foi em frente com o caso, e seu acusador terminou retirando as acusações, com um posterior pedido de desculpas por parte de seus advogados.

Os problemas em Bohemian Rhapsody, entretando, foram além. No fim de 2017, Singer foi dispensado de seus trabalhos com o estúdio alegando que ele havia ficado "indisponível" para continuar seu trabalho. Dexter Fletcher (diretor de Voando Alto) assumiu as duas últimas semanas de filmagem, mas Bryan manteve sozinho o crédito de diretor. Nos meses seguintes, ele foi a público esclarecer que havia pedido um intervalo nas filmagens para cuidar da saúde de sua mãe e de sua própria, e que não queria "nada além de ter a permissão de finalizar o projeto e honrar a memória de Freddie Mercury". Nos bastidores, relatos de Singer se indispondo com Rami Malek alimentaram a decisão do estúdio em retirá-lo do filme, mas o próprio diretor rebate as acusações, dizendo que qualquer fircção é normal em um empreendimento criativo desse porte. Mal estar ou não, o fato é que o estúdio saiu com um produto vencedor, a maior bilheteria para uma biografia musical da história, e ainda garfou dois Globos de Ouro. Ignorar o trabalho de Singer foi, no mínimo, indelicado.

Glenn Close em A Esposa

E não tira a surpresa da vitória do filme, um novelão com 25 minutos brilhantes em seu clímax, que recria a apresentação do Queen no Live-Aid, mas ainda assim um drama com problemas gravíssimos de estrutura, de roteiro e de concepção. Quem sai diminuído com a vitória de Bohemian Rhapsody é Nasce Uma Estrela, que chegou na festa como favorito em um punhado de categorias e terminou com um único troféu, para a canção "Shallow". Lady Gaga subiu ao palco e devia ter aproveitado melhor seu tempo, porque sua esperança de também ser agraciada como melhor atriz evaporou com a vitória absurdamente merecida de Glenn Close, pelo drama A Esposa. Honestamente, é como comparar um monomotor com um supersônico: Lady Gaga se esforça em Nasce Uma Estrela, mas ela basicamente interpreta uma versão menos excêntrica de si mesma, e sua indicação existe somente pela sanha da Associação de Imprensa estrangeira de Hollywood (a HFPA) em colorir sua festa com celebridades mais pop.

Glenn Close, por sinal, caprichou no discurso político e na força de sua personagem, uma escritora que vive à sombra do marido, romancista que vence o Nobel. Emocionada, ela espelhou o tom da noite, em especial depois de Regina King, premiada como atriz coadjuvante por Se a Rua Beale Falasse, ultrapassou o tempo de seu discurso de agradecimento para conclamar seus colegas a usar os holofotes de sua posição de poder e se comprometer a implantar de fato igualdade de gênero não só na indústria do cinema, mas em todas as outras. "Eu faço uma promessa, e seu que não será fácil, de garantir que tudo que eu produzir terá 50 por cento de mulheres na equipe", disse a atriz. Embora os apresentadores Andy Samberg e Sandra Oh prometessem uma festa menos política, foi impossível fugir do tema. A presidente da HFPA, Meher Tatna, anunciou dois financiamentos de 1 milhão de dólares para ONGs voltadas a jornalistas – profissão que anda sob ataque pelo mundo, inclusive por aqui. Brad Simpson, produtor premiado por O Assassinato de Gianni Versace, lembrou que o poder do medo, que dá espaço para perseguição e violência contra minorias, continua forte. "Devemos resistir", concluiu.

Christian Bale (sério!) em Vice

O que talvez tenha sido o melhor momento, porém, foi o discurso de Christian Bale, vencedor como melhor ator pela biografia Vice, do ex-vice presidente Dick Cheney. Empolgado e sem papas na língua, o ator agradeceu a Satã "pela inspiração" e chamou Cheney de "cretino", finalizando seu agradecimento carregado de sarcasmo apontando que o diretor Adam McKay procurava um ator capaz de interpretar alguém "desprovido de carisma". A noite ainda foi generosa com Green Book (melhor ator coadjuvante para Mahershala Ali, melhor roteiro e melhor filme comédia/musical), que viu o c0-diretor de Debi & Lóide, Peter Farrelly, entregando um discurso apaixonado para o biografado em seu filme, o pianista Don Shirley (papel de Ali), um "grande homem e um gênio subestimado que não podia tocar a música que amava simplesmente pela cor de sua pele". Em uma festa em que um musical ganhou como melhor drama, e um drama foi premiado como melhor musical/comédia, a vitória mais expressiva, justa e sensacional veio logo no começo da noite, quando Homem-Aranha no Aranhaverso ganhou o Globo de Ouro de melhor animação. Cenas dos próximos capítulos? Preparem-se para a dominação de Roma (que aqui venceu como filme estrangeiro e melhor diretor) no Oscar.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.