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Christian Bale impressiona como Dick Cheney no ácido e divertido (!) Vice

Roberto Sadovski

31/01/2019 06h57

É de se esperar que a cinebiografia de um vice-presidente americano chegue com uma certa sobriedade. Certo. Acho que esqueceram de enviar esse memo para o diretor e roteirista Adam McKay. Com Vice, ele transforma a vida e a carreira de Dick Cheney, a sombra movendo os pauzinhos por trás da administração George W. Bush, em uma farsa perversa, surpreendente e surpreendentemente engraçada! Porque só com bom humor para aliviar a escuridão na trajetória de um homem comum, medíocre até certo momento de sua vida, que galgou as escadas do poder com voracidade. No centro de tudo, surge Christian Bale com uma atuação impressionante em sua perfeição e sua entrega. Vice é como O Destino de Uma Nação, que ano passado deu o Oscar a Gary Oldman – com volumes iguais de maquiagem e próteses, mas substituindo a reverência pela sátira.

Se como registro histórico Vice é por vezes muito disperso, disparando fragmentos narrativos como confete, como entretenimento é um filme sólido, auxiliado por uma montagem frenética que nos deixa com sensação de constante pânico. No texto de McKay, Cheney começa como operário braçal, bêbado e briguento, que ouve uma dose de realidade de sua mulher, Lynne (Amy Adams, igualmente sublime), e cava uma vaga de estagiário na Casa Branca, trabalhando com o onipresente Donald Rumsfeld (Steve Carrell). Cheney é o tipo mais astuto de animal político: discreto e observador, cortês e prestativo. Ele ascende na hierarquia do poder ianque sem chamar atenção, colocando-se como conselheiro indispensável, como peça-chave no círculo interno da Sala Oval. McKay muitas vezes deixa o realismo de lado e prefere contar a história não exatamente com precisão, mas como um retrato falado de decisões vitais para o futuro do planeta. Afinal, ele tem em Cheney não um personagem, e sim um alvo – e no momento que isso fica claro, Vice ganha em estatura e como entretenimento.

Sam Rockwell cria um George W. Bush exatamente como podemos esperar

E disse McKay entende como poucos. Desenhando sua carreira em comédia ao lado de Will Ferrell em sucessos como O Âncora, Ricky Bobby – A Toda Velocidade e Quase Irmãos, o diretor deu uma guinada inesperada em 2015 com A Grande Aposta, em que ele recontou, num quebra-cabeças narrativo brilhante, a explosão da crise financeira que chacoalhou o mundo em 2007 e 2008. De repente, o responsável por comédias ligeiras e personagens icônicos tinha uma cadeira no Oscar, indicado a melhor filme e diretor, levando a estatueta de melhor roteiro adaptado. A Grande Aposta mostrou que seu estilo anárquico se encaixava à perfeição com os absurdos da vida real, e que o cinema era a melhor mídia para contar essas histórias – mesmo as explicações mais cabeludas sobre economia, especulação imobiliária e apostas na bolsa de valores ganhavam interlúdios bizarros, inesperados e estranhamente didáticos. Vice segue o mesmo caminho, usando as ferramentas do cinema para criar uma narrativa, na falta de uma palavra melhor, surreal – de que outra forma podemos descrever um filme que sobe seus créditos no meio do segundo ato ou que tem seus personagens declamando diálogos como numa peça shakespeariana?

Essa engenharia funciona boa parte pela dedicação hercúlea de Christian Bale, que experimenta uma série de transformações físicas para mimetizar a ação dos anos em Dick Cheney. Mas próteses e maquiagem servem, na verdade, para realçar sua composição perfeita de um homem que escolheu carregar o destino do mundo nas sombras. Nas mãos de Bale, Cheney é como o sociopata Hannibal Lecter, tomando decisões que podem custar milhares de vidas sem perder o ritmo cardíaco. Suas maneiras polidas escondem uma sede de poder que muda de foco com a maré da história, e encontra seu verdadeiro chamado ao aceitar o convite de um certo George W. Bush (Sam Rockwell, abraçando a sátira) para ser um vice-presidente nada decorativo, mas extremamente ativo e decidido nos bastidores do poder. McKay consegue mastigar a complexidade que move seu protagonista sem nunca o colocar no holofote da paródia – mesmo quando Vice assume seu papel de farsa, o Dick Cheney de Christian Bale segue alheio ao circo, seja ordenando a invasão ao Iraque pós-11 de setembro, seja alimentando o combustível que resultou no sangrento ISIS e na ameaça do terrorismo moderno. Seja sacrificando seu futuro político para não expor a filha, assumidamente homossexual.

Adam McKay dirige Christian Bale caracterizado como Dick Cheney

Não espere, portanto, um retrato equilibrado de um momento histórico. Vice deixa claro que Adam McKay escolheu um lado, e não se furta em colocar no americano médio, o sujeito tosco e pouco letrado que colocou uma piada como Donald Trump na Casa Branca, a culpa por deixar o comando da nação mais poderosa do mundo nas mãos de irresponsáveis. Em nenhum momento seu filme determina uma linha separando arte de público, e ele o faz de tal forma que é impossível não se sentir parte da ação – e de suas consequências. Imagino a reação do público ianque, aplaudindo ou vaiando de acordo com sua inclinação política. Imagino como as maquinações dos bastidores políticos ressoarão por aqui! Os melhores filmes, afinal, são justamente os que causam uma reação. Seja a impotência ante a estupidez em Infiltrado na Klan. Ou o racismo institucionalizado de Se a Rua Beale Falasse. Ou a beleza que esconde uma revolução em Roma. Ou, finalmente, a revelação da identidade do narrador onipresente em Vice – que lamenta, assim como muitos, inclusive o próprio Christian Bale, que uma figura como Dick Cheney continue politicamente ativa.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.