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Se a Rua Beale Falasse pergunta se o amor pode superar o ódio racial

Roberto Sadovski

07/02/2019 05h59

Em duas cenas atordoantes, o diretor Barry Jenkins define o tom de sua adaptação de Se a Rua Beale Falasse. Na primeira, duas famílias se encontram para anunciar uma gravidez tão inesperada quanto bem vinda – mas a falsa cordialidade logo dá espaço a agressividade e intolerância. Na segunda, um casal recebe um amigo recém-saído da cadeia para um almoço de boas vindas. O bate-papo logo se torna uma confissão lenta e sufocante de como a sociedade ainda julga menos por mérito e mais por tom de pele. Não é preciso dizer que todos os protagonistas são negros. Ainda assim, existe dignidade na melancolia impressa por Jenkins, atento mais ao fortalecimento de laços afetivos – em que parentes e amigos que se amam criam, juntos, uma carapaça contra o opressor – do que em fazer um "cinema-denúncia".

É um salto e tanto para o diretor de Moonlight, que em 2017 foi premiado com o Oscar de melhor filme. Vale apontar que eu não sou o maior fã de Moonlight, drama que chega no limite de trocar narrativa por palanque, resultado de um cineasta furioso com o estado das coisas – e, admite-se, na América de Trump o que não falta são motivos para ter raiva. Mas Jenkins, artista talentoso, preferiu o caminho do amor em Se a Rua Beale Falasse, deixando que os personagens absorvessem e lidassem com as fagulhas políticas e sociais a seu redor, deixando para nós, do lado de cá, a reflexão sobre suas consequências. E é assim, com afagos, que o filme torna-se um libelo poderoso sobre o racismo estrutural em voga na sociedade americana – que encontra todos os ecos aqui na parte de baixo do continente. É um filme de um cineasta maduro, ciente do poder de sua arte, mas não deixando que o ativismo da Hollywood do novo século se tornasse protagonista de sua história.

Regina King em uma busca incessante pela justiça

Baseado no livre publicado por James Baldwin em 1974, Se a Rua Beale Falasse acompanha um casal que começa a vida juntos. Tish (a espetacular estreante Kiki Layne) mal saiu da adolescência e se descobre grávida do escultor em formação Fonny (Stephan James, um gigante na série Homecoming). Eles se preparam para dividir suas vidas quando Fonny é acusado de estuprar uma imigrante porto-riquenha e termina preso. É óbvio que ele, identificado em outra parte de Nova York no momento do crime, é inocente. E é óbvio também que o "sistema", pré-disposto a colocar um jovem negro atrás das grandes porque uma mulher abalada e coagida lhe aponta o dedo, não vai facilitar sua liberdade. O filme acompanha, então, um sistema diferente, o de uma família ainda mais unida pela adversidade, representada pela fúria colossal de Sharon, mãe de Tish, que inicia uma cruzada para buscar os elementos que inocentem seu genro. Defendida por uma Regina King perfeita, ela termina como nosso avatar, nosso par de olhos, ao longo do filme.

O que Barry Jenkins faz em Se a Rua Beale Falasse é uma costura habilidosa e elegante de gêneros. O romance pueril ameaçado por forças externas; o drama legal representado pelo advogado idealista que abraça o caso; a tragédia familiar que revela tanto as fissuras quanto a conexão de pessoas que enfrentam a mesma luta, da forma que for necessário; e o comentário social sem rodeios. Porque, mais uma vez, o grande antagonista da trama é mesmo o racismo estrutural, a noção de que o preconceito ganha ares de normalidade por ser construído com relações de poder e opressão. É a dor de quem enfrenta, pela cor de sua pele, tratamento diferenciado em uma sociedade teoricamente igualitária. É a certeza de que a justiça não vai funcionar porque, pela estrutura do sistema, um jovem negro é culpado até ser provado o contrário. Ao menos, em Rua Beale Fonny pode alimentar a esperança de liberdade estando na cadeia. Outros, como Oscar Grant, Stephon Clark, Freddy Gray e Philando Castile, não tiveram a mesma sorte.

Um jantar, uma conversa e a força que vem dos laços afetivos

Se a Rua Beale Falasse corria todos os riscos inerentes à sua premissa, especialmente no cinemão ianque do novo século. Podia facilmente se render ao dramalhão, já que cabe à trama o lugar-comum do amor interrompido e da injustiça judicial. Em mãos menos competentes, vestiria sem pudor o manto do martírio racial (como o malfadado O Nascimento de Uma Nação). Mas Barry Jenkins tem um olhar especial para encontrar a beleza nos lugares mais improváveis, e o talento para transformar o livro de Baldwin em um roteiro complexo e rico em subtexto – que é transformado em ouro puro com o elenco que ele reuniu, potencializado pela narrativa não-linear combinando paixão e tensão em doses iguais. Sua história, porém, é melhor resumida na cena em que David (o excepcional Brian Tyree Henry), amigo de Fonny, fala sobre sua prisão: o relato começa com indignação pela injustiça a que ele foi submetido, mas termina na claustrofobia e no puro pânico que restam a um jovem negro quando ele se vê encarcerado unicamente pela palavra de um policial branco. A arma para combater o inimigo poderoso que é o racismo, sugere Se a Rua Beale Falasse, não são paus e pedras: é o amor e a decência inerente ao ser humano, sentimentos mais fortes que as grades da prisão.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.