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Por que os heróis desajustados de The Umbrella Academy precisam de terapia

Roberto Sadovski

15/02/2019 05h15

Enquanto no cinema vemos os Vingadores e, vá lá, a Liga da Justiça tentando salvar o mundo, os super-heróis que pipocam em profusão na TV – em especial nas plataformas de streaming – meio que não estão nem aí. Caso em questão, The Umbrella Academy, série que adapta com sucesso a HQ criada por Gerard Way e Gabriel Bá. A trama é simples: um grupo de seres com habilidades além do normal precisa resolver suas diferenças e salvar o mundo (pois é). O problema é determinar qual dos dois seria a prioridade. Em dez episódios, o produtor Steve Blackman consegue não só traduzir a estranheza do material original como confere personalidade própria a essa desconstrução esperta e emocionante do conceito de super-heróis. Acredite: você nunca viu nada como The Umbrella Academy.

Bom, quase nunca. Quem acompanha gibis e cultura pop contemporânea provavelmente já passou os olhos em Poder Sem Limites (um filme), Sociedade da Justiça: A Era de Ouro (uma história em quadrinhos) ou Watchmen (os dois). São histórias em que os arquétipos dos super-heróis, estabelecidos lá atrás quando o Superman saltou sobre um edifício na primeira edição de Action Comics, são repensados, eliminados e, eventualmente, reconstruídos. Não existe exatamente bem ou mal, e sim uma imensa área cinzenta em que seres superpoderosos não são exatamente dotados de altruísmo, que pode ser atingido como uma consequência de sua agenda particular. Mais curioso ainda é observar que a TV, e não o cinema, tornou-se o lugar ideal para contar histórias assim, de Demolidor a Titãs, passando por Legion até a seminal Heroes (ao menos a primeira temporada).

Adultos, a Umbrella Academy precisa descobrir como salvar o mundo

The Umbrella Academy é herdeira dessa tradição, capaz ainda de ir além: removidos de seus poderes, seus protagonistas seriam pessoas mentalmente quebradas, incapazes de lidar com a pressão imposta a eles. Suas habilidades, entretanto, potencializam essa desconexão do "mundo real", fazendo com que estímulos externos, como a ameaça real do apocalipse, piorem a sensação de paranoia, isolamento, culpa e rejeição. Essa carga psicológica não é exatamente original – é justo afirmar que os demônios que Jessica Jones combate em sua mente são tão prejudiciais como os que ameaçam sua integridade física -, mas amplifica os conflitos dos personagens, seja traumas que enfrentam sozinhos, seja o caminhão de problemas que eles precisam resolver quando estão juntos. É um drama movido a anfetamina que troca a sessão de terapia por violência e morte.

A trama segue de perto a obra de Way e Bá. Em 1989, 43 mulheres em pontos diferentes do planeta ficam grávidas e dão a luz no mesmo momento – uma gestação que durou nada além de poucas horas. Um milionário consegue adotar sete dessas crianças e passa a estudar suas habilidades especiais para, claro, criar um grupo de super-heróis capaz de salvar o mundo. A série começa anos depois, com o grupo já esfacelado. Um deles, Luther (Tom Hooper) mora na Lua; outro, Diego (David Cantañeda), tornou-se um combatente do crime ao melhor estilo Batman. Klaus (Robert Sheenan) consegue falar com os mortos e é viciado em todo tipo de droga já criada; Allison (Emmy Reaver-Lampman) é uma atriz de cinema que não conseguiu ter uma família normal; o Número Cinco (Aidan Gallagher), capaz de se teletransportar, desapareceu décadas antes. Ben (Ethan Hwang) está morto. E Vanya (Ellen Page) sempre foi deixada de lado por ser a única a não apresentar nenhum poder especial.

Gabriel Bá e Gerard Way: criadores visitam a produção de sua criatura

Eles se reúnem na mansão que servia de sede para a equipe com a notícia da morte de seu "pai", Sir Reginald Hargreeves (Colm Feore), e o reencontro é o ponto de partida para uma trama que envolve viagem no tempo, assassinos profissionais, o maior fã dos jovens heróis e o despertar da ameaça que pode dar cabo à toda vida na Terra. Alguns dos conceitos mais extremos dos quadrinhos de Way e Bá foram adaptados para uma ambientação mais, digamos, realista (nada de gorilas marcianos, por exemplo). Mas em nenhum momento suas ideias perdem o impacto. Pelo contrário. Sob o comando de Steve Blackman (que já trabalhou em séries como Bones, Legion e Fargo), The Umbrella Academy abraça sua esquisitice, ao mesmo tempo em que usa a estrutura da Netflix para contar sua história sem pressa. Assim como A Maldição da Residência Hill, a série traz uma narrativa não-linear, em que pedaços do quebra-cabeças são jogados ao longo dos dez episódios na esperança que, ao final, tudo faça sentido.

E faz. O elenco em perfeito sintonia ajuda nossa conexão com a história absurda, em especial Aidan Gallagher, que termina como protagonista não-oficial da coisa toda. Até Ellen Page, que nos últimos anos tem sido ótima em interpretar Ellen Page, usa essa familiaridade a seu favor com as mudanças de tom de sua personagem. Direção de arte impecável e produção esmerada fazem parte do pacote, que inclui um chimpanzé com trejeitos de lorde inglês e uma androide que serve como mãe postiça para essa coleção de desajustados. O ritmo poderia ser mais acelerado lá pelo quinto episódio, e as reviravoltas da trama se beneficiariam de uma resolução mais esparsada, sem compactar tudo no final. Pecados menores que não tiram o brilho de uma série que dá um bem vindo respiro ao mundo dos super-heróis na cultura pop moderna. Afinal, alguém precisa cuidar do lado esquisito da vida enquanto os Vingadores salvam o universo.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.