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“Uma biografia deve servir ao filme, não aos fatos”, diz diretor de Tolkien

Roberto Sadovski

24/05/2019 06h01

"Você está em São Paulo? Tive uma estadia muito agradável aí." O diretor finlandês Dome Karukoski começa nosso papo com saudosismo. Ele esteve na cidade alguns anos atrás durante a Mostra Internacional de Cinema e, entre cafezinhos e pão de queijo, aproveitou o festival. Mas era outra época para o cineasta, que até então se dividia entre curtas, longas e trabalhos para a TV em sua terra natal. Tolkien é um animal diferente: seu primeiro filme para um grande estúdio – no caso a Fox Searchlight, divisão "independente" da empresa que agora faz parte da Disney -, o que coloca outro tipo de pressão no trabalho. Ou não. "Na verdade não foi diferente ou mais difícil do que filmar em casa", conta, em um inglês com zero sotaque. "A Fox queria uma voz diferente, eu disse que queria seguir meus intintos e eles toparam. Disseram para eu seguir meu coração."

Tolkien, biografia do autor de O Senhor dos Anéis, um dos livros mais importantes da história, é justamente isso: um trabalho que fala ao coração. "Li o roteiro anos atrás, e o tempo me ajudou a moldar a história", continua. "Foi um projeto que chegou a mim em uma época importante de minha vida. Eu vejo um pouco de mim em Tolkien." Dome conta que leu a trilogia quando tinha entre 12 e 13 anos de idade, quando se sentia um pouco deslocado entre seus colegas. O filme remeteu a essa época. "O roteiro trazia a ligação entre mãe e filho, a importância em descobrir seus amigos e em encontrar o lugar o qual pertencemos." No caso do escritor J.R.R. Tolkien (papel do ator Nicholas Hoult), isso se deu na vida acadêmica, em sua paixão para descobrir e entender diferentes idiomas. "Eu sempre fui curioso com outras culturas, então enxerguei um paralelo", completa. "E eu sou fã!"

Dome Karukoski dirige Nicholas Hoult e Lily Collins

Karukoski não está sozinho, já que O Senhor dos Anéis é uma das obras mais lidas em todo o mundo, o que ganhou ainda mais atenção no novo século depois do sucesso das adaptações para o cinema comandadas por Peter Jackson. Escolher um recorte da vida do escritor foi tarefa complexa, em especial sob a sombra da Saga do Anel. A escolha, então, foi concentrar-se em seus anos formativos e nos eventos que dispararam sua imaginação para a criação de toda a história ambientada na Terra Média. "O foco foi o começo de sua vida em Oxford, foi mostrar como sua imaginação funcionava", explica o diretor. "Muita coisa notória ficou de fora, como sua devoção católica, que foi fundamental em seu trabalho depois do período que abordamos. Mas o filme é sobre amizade e amor, seu relacionamento com Edith (Lily Collins) e sobre como ele construiu histórias a partir de ideias."

Embora o autor tenha criado mundos de fantasia ricos e detalhados, Tolkien mantém sua narrativa com os pés no chão, bem longe de elementos fantásticos. "Suas primeiras publicações em Oxford não abordavam o gênero, então fazer com que o filme fugisse do realismo não seria justo com quem ele era naquela época", explica. "Sua paixão era o estudo da linguagem, então eu busquei equilibrar seu amor por idiomas com seu interesse pela mitologia." Isso também justifica a opção do diretor em terminar seu filme no momento em que ele começa a escrever O Hobbit, que seria a culminação de todas as experiências que vivera até ali. "Como cineasta, preciso saber exatamente a história que quero contar", ressalta. "E esse era o fim dessa história, não senti necessidade em colocar uma cena a mais."

A vida fica bem mais legal quando a gente coloca um dragão

Mesmo assim, Tolkien não abre mão de uma certa simbologia que remete ao trabalho futuro do escritor, em especial nas cenas durante a Primeira Guerra Mundial, em que o caos do conflito e os massacres nos campos de batalha sugerem imagens que se materializariam como a representação do mal em seus textos. "Não existem muitos registros sobre suas experiências na guerra, então senti mais liberdade para ilustrar uma jornada emocional", explica. "A guerra nunca o inspirou, mas o moldou, e as cenas foram construídas com essa visão." Dome conta que também buscou inspiração em figuras que remetessem à obra de Tolkien, primeiro nas ilustrações de seus livros, depois nos filmes de Peter Jackson. "O mundo que ele ia criar ainda não existia, então eram ideias, traduções do medo que ele sentia no campo de batalha. Medo de perder um amigo, de perder a própria vida. Então o dragão que coloquei em uma cena surge como materialização desse medo, já que representa o maior temor na mitologia."

Mesmo com tanta pesquisa para reconstruir os passos do escritor, o diretor não obteve o aval da família de Tolkien para fazer seu filme – e não esperava nada diferente. "É meio que a política que eles tem, mas nunca foi nada hostil", enfatiza. "Nove entre dez biografias são feitas sem o aval da família dos biografados. E é melhor assim, porque do contrário estaria servindo a eles, e não ao filme. Então eu não sei o que eles possam achar, mas espero que eles gostem." Dome Karukoski tem no currículo uma biografia e um filme baseado em uma pessoa real, e cravou uma regra para abordar histórias assim: entender os fatos e usar alterações para criar drama, para a história ter movimento e não ser enfadonha. "Uma biografia deve servir ao filme, não aos fatos", conclui. "Depois de descobrir quem é o personagem, é preciso construir as cenas para lhe extrair a emoção. É ficção inspirada na vida real. Acho que é a melhor forma de mostrar respeito a quem é biografado. E acredito que, assim, Tolkien está vivo no filme."

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.