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Imprevisível, Longe de Casa traz romance teen como filme do Homem-Aranha

Roberto Sadovski

04/07/2019 05h39

Em um certo momento, ainda nos primeiros minutos de Homem-Aranha: Longe de Casa, eu quase esqueci que era a) uma aventura da Marvel e b) teríamos super-heróis em ação a qualquer segundo. Mais do que em seu antecessor, De Volta ao Lar, que trouxe a primeira aventura solo do Amigão da Vizinhança no Universo Cinematográfico Marvel, o novo filme abraça o tom de comédia teen, mirando na interação entre uma salada de personagens adolescentes, e o texto flui de forma tão natural que nem precisava colocar gente fantasiada com poderes malucos na mistura. A boa notícia é que tudo é executado pelo diretor Jon Watts em perfeito equilíbrio com o tipo de ação anabolizada que se tornou sinônimo do estúdio na última década. Ainda assim, Longe de Casa é leve e imprevisível, uma aventura que não tem o menor pudor em abraçar os aspectos mais absurdos de seu conceito, algo mais próximo a Homem-Formiga do que a Pantera Negra. É um bom respiro para a Marvel se recuperar de um evento tão bombástico como Vingadores: Ultimato e planejar como será seu futuro no cinema.

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Acima de tudo, Longe de Casa consolida essa versão do Homem-Aranha como o padrão no cinema pelos próximos anos. É compreensível que uma boa fatia dos fãs olhe torto para qualquer interpretação do herói que não seja a clássica, ambientada como nas HQs entre os anos 60 e 80, com Peter fotografando para o Clarim Diário, lidando com a falta de dinheiro, com a tia May sempre doente, com a vida amorosa em frangalhos e com o vilão do mês. Mas o bacana de ter um personagem tão rico em mãos é que lhe cabe qualquer execução, contanto que ela permaneça fiel aos conceitos originais traçados por Stan Lee e Steve Ditko: ele não é um "super-herói", e sim um moleque impelido a fazer o certo para impedir que outros sofram uma tragédia como a que ele sofreu. Grandes poderes, grandes responsabilidades, a história de sempre. A diferença é que, aqui, Peter (interpretado à perfeição por Tom Holland) escolhe ser um herói não só após a morte de seu tio Ben (o evento sugerido em Capitão América: Guerra Civil), mas também para manter o legado de Tony Stark, seu mentor que se sacrificou para salvar o universo em Ultimato.

Jake Gyllenhaal, divertindo-se ao máximo como Mysterio

O peso deste legado persegue Peter mesmo quando ele sai de férias com seus amigos – que, apagados da existência pelo estalar de dedos de Thanos em Guerra Infinita, voltam cinco anos depois junto com metade da vida na galáxia para um mundo no mínimo confuso. A explicação surge no começo de Longe de Casa, que de cara estabelece sua conexão com o MCU antes de trocar a paisagem urbana de Nova York pelos destinos turísticos do outro lado do Atlântico. Mas ser herói não é fácil, e Peter descobre que suas férias foram "sequestradas" por Nick Fury (Samuel L. Jackson), que precisa de sua ajuda para deter criaturas capazes de destruir (mais uma vez) o mundo. Estes "elementais" surgem de dimensões paralelas e entram na mira de Fury graças à intervenção de Quentin Beck, único sobrevivente de uma Terra devastada, que tenta compensar sua perda salvando nosso planeta. Beck, apelidado de Mysterio, é o grande trunfo de Longe de Casa – e também o personagem mais divertido que Jake Gyllenhaal teve oportunidade de fazer em muito tempo. Sem entrar em detalhes da trama, basta dizer que a ação passa por Veneza, Praga, Berlim e Londres, e que nem tudo é exatamente o que parece ser. Ok, vale uma pista: o novo Homem-Aranha serve não só para encerrar a fase 3 da Marvel, como também amarra uma narrativa iniciada em 2008 com o primeiro Homem de Ferro. Olhos abertos!

O grande talento de Jon Watts, mais uma vez como diretor depois de De Volta ao Lar, é costurar a ação épica típica de um filme da Marvel com os dramas adolescentes carregados por Peter. Se a magnitude dos efeitos visuais por vezes parece genérica (e pode acreditar que não é o caso), é a angústia adolescente que faz deste Homem-Aranha um ponto fora da curva não só no estúdio, mas entre os candidatos a blockbuster que os estúdios desovam a cada semana. Peter Parker não é um herói maior que a vida como todos os seus pares, e sim um moleque tentando fazer o melhor possível com a responsabilidade em suas mãos – e falhando miseravelmente a cada tentativa, só pra sacudir a poeira e se jogar na peleja de novo. É sua relação com seus amigos, em especial com MJ (Zendaya), por quem ele tem uma queda nada sutil, que traz os momentos mais bacanas do novo filme, justamente por colocar os pés no chão e lembrar as coisas boas que estão em jogo. É um recorte que pertence mais a uma comédia romântica arrancada de algum ponto dos anos 90 e menos a um filme com o logo da Marvel – o que é perfeito! É esse tipo de narrativa que deu ao herói tamanha longevidade e sucesso nos quadrinhos, e é exatamente isso que Longe de Casa coloca no centro, fazendo com que um filme tão grandioso ainda pareça tão humano.

Ah, o amor…: MJ (Zendaya) dá umas bandas com o Amigão da Vizinhança

Ao contrário de, digamos, Homem-Aranha no Aranhaverso, não existe nada de revolucionário em Homem-Aranha: Longe de Casa. A trama segue os passos da jornada do herói, que confronta seus limites e aprende com seus erros, embalado em uma aventura fácil de seguir e de gostar. Pode parecer pouco para o herói que, no começo do século, tirou sozinho os filmes baseados em HQs de super-heróis do gueto no cinemão, mas em nenhum momento surge como um retrocesso. Pelo contrário: o que a Marvel faz é usar essa educação que o público teve nas últimas décadas para entregar uma visão diferente de um herói tão conhecido. Fazer parte deste universo pode deixar as engrenagens criativas emperradas, mas seus realizadores já aprenderam como cada um de seus personagens cria uma conexão emocional com o público. O espetáculo faz parte do pacote – Longe de Casa traz efeitos verdadeiramente revolucionários para materializar os poderes surpreendentes de Mysterio e, acredite, as comparações com Matrix não são exageradas. Mas o que faz o público continuar acreditando no Homem-Aranha é a identificação com seus dilemas adolescentes, sua resposta juvenil a ameaças talvez muito adultas para ele enfrentar, e seu senso de responsabilidade irrefreável. Acompanhar seu crescimento, físico, moral e emocional, materializado sem nenhum esforço por Tom Holland, continua sendo uma experiência fascinante.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.