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Trilogia Homem-Aranha: Como Sam Raimi tirou as HQs do gueto no cinema

Roberto Sadovski

06/07/2019 03h45

Homem-Aranha: Longe de Casa é a oitava aventura do herói no cinema (descontando as adaptações da série de TV nos anos 70). Hoje parte fundamental do Universo Cinematográfico Marvel, o Cabeça de Teia iniciou sua transição do papel para as telas no começo do século com outras propostas e expectativas diferentes. Quando Sam Raimi dirigiu Homem-Aranha em 2002, super-heróis dos quadrinhos no cinema viviam de explosões eventuais, seguidas de novos períodos no limbo. Não eram, nem de longe, o carro-chefe do entretenimento pop, e sim uma anomalia, o fenômeno ocasional que vez por outra jogava luz em uma mídia até então navegada unicamente pelos iniciados. Quando assumiu o controle da adaptação do Amigão da Vizinhança do papel para o cinema, Raimi se colocou em uma outra missão: tirar as HQs do gueto no cinema, fazendo com que super-heróis pudessem ir além de uma curiosidade. Uma tarefa que só um fã poderia executar.

Basta uma espiada no panorama do cinemão atual para ver que o diretor teve sucesso total em sua empreitada. Se o sucesso dos quadrinhos no cinema antes se resumia a Batman, hoje até a sua avó sabe quem é Thanos. Marvel, DC e uma dúzia de editoras independentes de HQs marcam seu território com sucesso no cinema e na TV. Autores de quadrinhos, como Mark Millar e Neil Gaiman, viram suas idéias convertidas com sucesso absoluto em outras mídias, fazendo com que os gibis se tornassem fonte principal e inesgotável de ideias. Homem-Aranha foi o sucesso que escancarou as portas, entreabertas dois anos antes por X-Men. Mas Sam Raimi não queria simplesmente fazer um filme que honrasse seu personagem favorito dos gibis: ele queria mostrar que as histórias pelas quais ele havia se apaixonado pela cultura pop eram acessíveis a todos, não importa o peso atrelado a um produto corporativo. Em três filmes ele conseguiu exatamente isso, e mudou totalmente o modo de o público encarar os aventureiros fantasiados. Graças a Raimi, hoje existem fãs de super-heróis que nunca abriram um gibi – mas que tem em mãos o mapa perfeito se a vontade bater.

Sam Raimi dirige Tobey Maguire e Kirsten Dunst em Homem-Aranha

Homem-Aranha foi, por sinal, o produto corporativo supremo. Depois de uma década enroscado em problemas legais acerca dos direitos dos personagens para o cinema, a Sony finalmente emergiu triunfante, dona do herói na tela grande. A escalação de Sam Raimi como diretor hoje parece óbvia, mas no final do século 20 ainda havia muita dúvida sobre como proceder com a adaptação de um super-herói tão popular. O único modelo até então era mesmo o Batman, que encarou dois filmes super estilosos assinados por Tim Burton, e duas odes ao exagero dirigidas por Joel Schumacher. Matrix mostrara um caminho distinto, a ficção científica assumida, que foi seguido com sucesso por Bryan Singer em X-Men. Mas o Homem-Aranha era um animal diferente, um herói com os pés no chão, gente como a gente, que não era nem um bilionário marcado pela tragédia nem parte de uma minoria perseguida pela humanidade. Peter Parker era só um adolescente normal, com problemas normais para adolescentes, que um dia descobriu da pior forma as grandes responsabilidades ancoradas em seus grandes poderes.

Raimi, que tinha no currículo filmes de apuro visual fantástico e sucesso comercial inexistente (sua maior bilheteria até então fora o drama romântico-esportivo Por Amor, com Kevin Costner), colocou na mesa suas credenciais. Ele obviamente sabia lidar com personagens que se mostravam o que não pareciam ser, como em Um Plano Simples ou O Dom da Premonição. A série Evil Dead havia o tornado um favorito dos fãs do gênero, e o diretor chegou a dirigir um "super-herói dos quadrinhos" em Darkman, claramente inspirado em sua paixão por gibis e filmes de terror. O estúdio comprou a briga e Raimi desenhou Homem-Aranha com o roteirista David Koepp, que trouxe elementos de roteiros nunca produzidos com o herói, inclusive um assinado por James Cameron. O filme teve seu elenco reduzido, concentrando-se na origem do Aranha (Tobey Maguire, ainda hoje o melhor intérprete do herói para uma fatia considerável de fãs), a morte de seu tio Ben, o amor nunca declarado por Mary Jane (Kirsten Dunst) e o conflito com o Duende Verde (Willem Dafoe). Mesmo com tantos chefs na cozinha, Raimi conseguiu injetar personalidade e charme à aventura, transbordando seu estilo mesmo em um produto corporativo tão gigantesco.

O público teve total empatia pela empreitada, e Homem-Aranha não só foi o primeiro filme a faturar mais de 100 milhões de dólares em sua estreia, como levou ao cinema uma gama absurdamente diversa de fãs, veteranos e neófiitos: do geek fanático por quadrinhos a adolescentes em busca de um romance teen, dos seguidores do estilo hiperbólico do cineasta aos cinéfilos sedentos por um bom pedaço de entretenimento, Homem-Aranha tinha um pouco para todo mundo. Triunfando no terreno pantanoso do filme "por comitê", em que o produto final é resultado não só da visão de seu diretor, mas também da orientação de produtores e executivos, aliado à demanda de departamentos de marketing e licenciamento, Sam Raimi partiu para a segunda parte de seu plano, que estreitaria a conexão emocional de plateia e personagem, o que só seria possível em uma obra pessoal, em que a paixão de seu realizador estivesse impressa em cada fotograma. O plano foi traduzido dois anos depois da estreia do herói nos cinemas, em o que se tornou sua aventura mais arriscada e pessoal: Homem-Aranha 2.

Não que a produção da sequência de um dos maiores fenômenos do cinema moderno tenha sido uma brisa. Mas 820 milhões de dólares nas bilheterias "compraram" uma blindagem intransponível a Raimi, que tocou a aventura com liberdade inesperada para um fã de quadrinhos. E o diretor era um entusiasta hardcore, capaz de citar edições específicas em que os personagens apareciam pela primeira vez, que usou sua carta branca para colocar seu vilão favorito na aventura (o Dr. Octopus, interpretado por Alfred Molina) e usar suas HQS preferidas como base para o roteiro – em especial a edição 50 de The Amazing Spider-Man, em que Peter Parker desiste de ser o herói, e cuja capa foi reproduzida no filme. Tudo em Homem-Aranha 2 foi superlativo. Da carga emocional traçada pela jornada de Peter, que vê sua responsabilidade como herói triturando qualquer possibilidade de uma vida normal com Mary Jane, às cenas de ação espetaculares, em especial um conflito de herói em vilão no topo de um trem em movimento riscando a paisagem de Nova York. Mais uma vez o público compareceu em peso, e o Homem-Aranha firmou-se como principal "representante" dos super-heróis dos quadrinhos no cinema, sucesso consolidado que estimulou a chegada em massa de novos personagens do papel nas telas. Ah, e foi o filme que inaugurou um artifício que depois se tornou parte integrante dos filmes da Marvel (e de super-heróis): a cena pós-créditos.

Foram três anos até que Sam Raimi completasse sua trilogia com Homem-Aranha 3, materializando a história sugerida ao final do filme anterior e cedendo à pressão do estúdio, que já navegava em um ambiente totalmente diferente do que existia cinco anos antes. O Cavaleiro das Trevas havia retornado em grande estilo com Batman Begins, a Marvel costurava sua independência nos bastidores e o Homem-Aranha não era mais o herói solitário carregando a tocha do cinema pop, representando sozinho um subgênero inteiro. Os produtores entendiam que os fãs se colocavam de forma mais vocal, e atender a seus apelos fazia parte do jogo. Assim, Raimi teve de inserir um personagem com o qual ele se sentia completamente desconfortável na mistura, mas o fã teve de dar espaço ao profissional, e Venom (Topher Grace, em uma das piores decisões de elenco da história) foi inserido em um roteiro já bastante complicado, que trazia a ameaça do Novo Duende (James Franco, finalmente assumindo a personalidade vilanesca de seu pai) e do Homem de Areia (Thomas Haden Church). Como se não bastasse, Peter Parker equilibrava o pedido de casamento a Mary Jane com o surgimento de um novo interesse amoroso, Gwen Stacy (Bryce Dallas Howard). Tudo isso espremido em pouco mais de duas horas de filme. Ufa!

Homem-Aranha 3, apesar de deixar muita gente torcendo o nariz, terminou como a maior bilheteria mundial do herói – 890 milhões de dólares, soma que pode ser batida agora por Longe de Casa -, mas deixou Sam Raimi e seu herói, Tobey Maguire, ressabiados em voltar ao barco. Um quarto filme, com John Malkovich no papel do Abutre e Anne Hathaway como a Gata Negra (ela terminou, veja só, fazendo a Mulher-Gato em Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge), estava planejado para 2011, iniciando uma segunda trilogia que culminaria com a criação do Sexteto Sinistro no cinema, tudo sob o olhar de Raimi. Mas não era para ser, e o que um dia fora o começo da dominação dos super-heróis dos quadrinhos no cinema, encerrou sua jornada por Peter e Mary Jane dançando coladinhos – doze anos antes de Steve Rogers encontrar paz ao lado de Peggy Carter. Sem chegar a um roteiro em que todos concordassem com a direção da série em sua segunda fase, Raimi educadamente retirou-se do projeto, e o herói terminou por experimentar um reboot em 2012 com Andrew Garfield assumindo a máscara em O Espetacular Homem-Aranha.

Não que Sam Raimi ainda tivesse algo a provar com o personagem que ajudou a moldar sua personalidade. Ele retornou o favor ao transformar o Homem-Aranha de ídolo dos fãs de quadrinhos em um fenômeno global genuíno, em três filmes de propostas (e bastidores) distintos, mas que terminam por amarrar uma única narrativa, cobrindo com louvor aspectos diferentes do herói e trazendo os vilões certos para que ele cumprisse sua jornada. É certo que, sem Raimi e sua trilogia, dificilmente haveria o Batman de Christopher Nolan, ou mesmo o Universo Cinematográfico Marvel. Muito menos a nova versão, adolescente e igualmente conflituosa, defendida com louvor por Tom Holland. Ao acompanhar o Homem-Aranha em seu voo vertiginoso entre os arranha céus de Manhattan, o público descobriu o espetáculo que podia explodir das páginas dos quadrinhos, como também um herói lhe falasse ao coração. Este, por fim, é o verdadeiro legado da trilogia, uma viagem empolgante que, pelo visto, não deve mais chegar ao fim.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.