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Por que Mulan pode ser a melhor versão de uma animação Disney

Roberto Sadovski

10/07/2019 02h41

Herói, dirigido por Zhang Yimou em 2002, é um dos filmes mais bonitos de toda a história do cinema. Sua narrativa épica, em que um lutador sem nome relembra seus duelos com três guerreiros poderosos na China antiga, antes da ascensão do primeiro imperador, é contada em um turbilhão de cores, pontuando coreografias marciais que substituem o peso da violência por pura poesia visual. Tem um pouco de história, um pouco de fantasia, emoldurado pelo poder catártico do cinema. O primeiro trailer de Mulan, versão live action da animação que a Disney lançou em 1998, trouxe ecos da obra de Yimou: uma história em grande escala que ancora um drama mais intimista. No caso, o dilema de uma jovem que, para honrar seu pai, um soldado já em seus melhores anos, veste-se como homem para lutar no exército do Imperador. Sugere uma aventura delicada e grandiosa ao mesmo tempo, que respeita suas raízes chinesas ao mesmo tempo em que abraça uma história universal. Daí você vai espiar alguns comentários de fãs da coisa e se depara com o mesmo chororô: "Não tem Muchu, estragaram minha infância". Preguiça.

Melhor voltar um pouco no tempo, para o momento exato em que a Disney, mesmo já arriscado adaptar seus desenhos clássicos em outro formato – O Livro da Selva em 1994, e 101 Dálmatas em 1996 -, percebeu que esse bem -bolado era um ótimo negócio. Foi em 2010, quando Alice no País das Maravilhas colocou mais de 1 bilhão de dólares nos cofres do estúdio. A partir daí, todo desenho animado que a Disney tenha produzido em sua longa história tornou-se fonte para uma versão moderna, destinada a a) dar uma sobrevida à marcas consagradas e b) garantir uma bolada considerável nas bilheterias. Existe a terceira, e não menos honesta, função, que é dar a artistas o direito de exercitar sua versão para obras que, de forma alguma, tenham encontrado formato definitivo. Arte, afinal, pode e deve ser reinterpretada, revista, refeita. Sem falar o óbvio que adaptar uma obra de uma mídia para outra requer – e você já adivinhou – adaptações! Depois que as regras são traçadas – afinal, ainda estamos tratando de produtos corporativos -, a nova obra reflete a visão de seu diretor.

Yifei Liu treina em segredo para ir à guerra como Mulan

Entram em cena os fãs. Não todos, obviamente, que em sua maioria entendem o processo criativo e aplaudem uma visão bacana de um clássico muito querido. Mas aquela minoria ruidosa, que se considera proprietária de todo e qualquer filme/série/animação/história em quadrinhos porque… bom, porque sim. A palavra "adaptação" é a kryptonita dessa turma, que não admite de forma alguma qualquer mudança em sua "propriedade", e inunda as interwebs com abaixo-assinados, cartas de protesto e qualquer outra coisa inútil que os faça se sentir donos do que eles não são. Já é rotina. Daniel Craig é loiro e parrudo, e não alto e moreno como James Bond é descrito nos livros de Ian Fleming? "Estragaram minha infância." O Homem-Aranha de Sam Raimi traz disparadores de teia orgânicos, e não mecânicos? "Estragaram minha infância." A belíssima Halle Beiley, escolhida para ser Ariel em A Pequena Sereia é negra, e não ruiva? "Estragaram minha infância." Essa gritaria é total perda de tempo, óbvio, porque cineastas tem mais o que fazer do que dar ouvidos a gente que, mesmo com uma pilha de boletos e a pia cheia de louça, insiste em não crescer. Mulan e seu trailer épico, claro, despertou o mesmo sentimento nessa fatia: "Onde está Muchu?"

Bom, não tem Muchu. Honestamente, não fará a menor falta, porque não possui nenhuma função narrativa. O dragão diminuto com voz de Eddie Murphy era uma tentativa para (re)capturar um relâmpago na garrafa, depois do trabalho fenomenal de Robin Williams como o Gênio em Aladdin. Mas Muchu não existe no conto chinês que inspirou o desenho, e servia apenas para o combo alívio cômico/venda de dragões de pelúcia. Seria uma distração da trama principal, que é a jornada de Mulan, interpretada pela chinesa Yifei Liu, em triunfar como a guerreira que ela já sabe que é, em um mundo de casamentos arranjados, muralhas sociais separando homens e mulheres, e a total proibição de uma jovem provar seu valor no campo de batalha. É um filme sobre o direito de forjar seu próprio destino, nem que para isso tradições ancestrais precisem ser quebradas. É um épico de artes marciais emoldurando uma história de superação.

O acampamento do exército do Imperador continua um lugar agitado

E ainda é uma aventura com o selo Disney. Mesmo que a diretora Niki Caro tenha sugerido que seu Mulan não seja um musical (as canções do filme de 1998 podem surgir rearranjadas ao longo da trilha sonora), o filme ainda é uma fantasia, especialmente depois das outras modificações feitas no texto de duas décadas atrás. De cara, não existe Li Shang, capitão do exército do Imperador por quem Mulan se apaixona. O personagem foi "dividido" em dois, com Donnie Yen assumindo o papel do comandante Tung, mentor da jovem no exército; e em Chen Honghui, soldado no mesmo exército e rival de Mulan nas trincheiras, que será interpretado por Yoson An. O vilão, o general do exército huno Shan Yu, também foi limado. Em seu lugar foi colocado Jason Scott Lee como Bori Khan, guerreiro huno em busca de vingar a morte de seu pai, que alinha-se aos planos da principal antagonista, a feiticeira Xian Lang, papel de Gong Li. Os novos personagens mudam a dinâmica de Mulan e adicionam outros elementos fantásticos à mistura, que talvez estejam mais alinhados com a visão de Niki Caro para a aventura.

Ainda é cedo para cravar se as mudanças servirão para dar a Mulan uma sensibilidade moderna, sem amputar seu sentido de aventura, ou se as modificações mais radicais (sem as canções que marcam o pulso emocional da história, sem Li Shang, sem Muchu) vão afastar o público mais nostálgico. Mas eu não acredito nisso. As versões das animações Disney já penderam para os dois lados, da fidelidade ao desenho original (Cinderela, Mogli, A Bela e a Fera) a novas interpretações de histórias familiares (Malévola, Christopher Robin, Dumbo). Aladdin molhou os pés ligeiramente das duas maneiras (em especial na interpretação de Will Smith para o Gênio), e o diretor de O Rei Leão deixou claro que sua intenção nunca foi simplesmente recriar cada passo do filme de 1994. Todos estes filmes, em maior ou menor grau, encontraram seu público. Mulan, como apresentado em seu primeiro trailer, arrisca ser um grande épico de guerra, amor, lealdade, fantasia e amadurecimento. Arrisco que uma resposta positiva seja ainda maior. Ao menos ninguém deve sentir falta de Gri-Li, o grilo irritante imposto à toda equipe da animação original pelo então presidente do estúdio, Michael Eisner. Vai entender.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.