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The Boys: Por que super-heróis desconstruídos são sempre mais legais

Roberto Sadovski

05/08/2019 04h39

Uma série como The Boys seria impossível uma década atrás. Mas a exposição ininterrupta a seres superpoderosos promovida na cultura pop moderna serviu como educação para que pudéssemos apreciar a desconstrução mostrada pela série: conhecendo nossos Supermen e nossos Homens-Aranha, virar pelo avesso o que os faz funcionar fica menos complicado. Afinal, o roteirista Garth Ennis, que criou a HQ com o desenhista Darick Robertson, nunca teve o menor interesse em sujeitos superpoderosos fantasiados que salvam o mundo. O que ele transparece – e que é traduzido nessa adaptação – é total desprezo por esse conceito. Em The Boys, série da Amazon Prime, super-heróis fazem parte da rotina como atletas, políticos e artistas. Em um mundo de pessoas normais, eles seriam celebridades, que usam sua imagem para vender todo tipo de produto- mais ou menos como acontece em nosso mundo, com a diferença que aqui eles ainda existem somente como ficção. E muitas celebridades, como descobrimos dia após dia, não são o que são sem ter um armário de esqueletos enterrado em concreto.

Isso fica evidente quando The Boys apresenta Os Sete, maior supergrupo do planeta, liderado pelo poderoso Capitão Pátria (tradução bacana para Homelander, basicamente um avatar para o Superman). Bancados, embalados e comercializados por uma corporação gigante, a Vought, eles são o máximo que qualquer um com superpoderes pode aspirar – exatamente o que acontece com Luz-Estrela (Erin Moriarty), super-heroína ingênua e altruísta do Iowa que consegue uma vaga na equipe. O choque de realidade vem quando ela chega na sede dos Sete e percebe que, por trás da cortina, heróis são sujeitos narcisistas e hedonistas, fanáticos dedicados a uma única causa: a sua própria. Não é diferente do choque experimentado por Hughie Campbell (Jack Quaid), que vê sua namorada estraçalhada ao ser literalmente atropelada por Trem-Bala, outro membro dos Sete que mal registra a tragédia que acaba de promover. É quando Hughie é procurado por Billy Bruto, que se apresenta como um agente federal que tem como missão manter os supers na linha.

Billy Bruto (Karl Urban, à esq.) e seus "garotos" Francês, Leitinho e Hughie

É nesse ponto que The Boys, a série, traça um caminho distinto dos quadrinhos originais – o que é ótimo! Afinal, a HQ de Ennis e Robertson teve 72 edições para desenvolver cada personagem e seus conflitos, ao mesmo tempo em que traçou seu mundo e executou sua narrativa com doses cavalares de violência e humor negro. Ao ser adaptada para oito episódios, a equipe liderada por Seth Rogen e Evan Goldberg (que também produziram Preacher, outra série de Garth Ennis) se concentrou na origem da equipe montada por Bruto (que conta com Leitinho, Francês e, eventualmente, A Fêmea), na perda da inocência de Luz-Estrela e no ponto de vista de Hughie, que entra de forma violenta e irrefreável nesse mundo muito além de sua vida comum. Muita coisa da HQ é preservada (como o romance inesperado de Hughie com Luz-Estrela), outras são jogadas pela janela, e um punhado passa a existir só nessa versão de carne e osso – como a personagem de Elisabeth Shue, executiva da Vought que trata seus "produtos" como cães de guarda privados.

O aspecto principal, porém, chega ao streaming intacto: a ideia de que grandes corporações são responsáveis pelo mapa sócio-político mundial. A diferença do "mundo real" é que, aqui, elas controlam os meios de impôr suas vontades pela força não com mísseis intercontinentais, e sim com a produção e promoção de super-heróis. Esse clima que mistura conspiração e vingança ganha dois vértices bem claros com Billy Bruto e com o Capitão Pátria – defendidos, respectivamente, pelos sensacionais Karl Urban e Anthony Starr. O primeiro é astro desde que surgiu na trilogia O Senhor dos Anéis, um fã de quadrinhos que foi coadjuvante em Thor Ragnarok (ele é Skurge, o Executor) e protagonista no sensacional (e pouco visto) Dredd. Starr, por sua vez, é uma revelação, ganhando o holofote como um super-humano com expressão de psicotata – sua presença como líder dos Sete nunca é motivo de celebração, e sim de desconforto. Por fim, seu arco surge como o mais interessante na série – e o mais descaradamente armado para uma segunda temporada.

Hughie (Jack Quaid) e Luz-Estrela (Erin Moriarty) chegam em um impasse

Desconstruir a ideia de super-heróis não é novidade, mas um conceito explorado às vezes à perfeição nos quadrinhos. Em Marshall Law, Pat Mills e Kevin O´Neill precederam em mais de uma década o caminho traçado por The Boys, com super-heróis descontrolados em um futuro distópico caçados por um fascista a serviço do mesmo governo que tolera seus pares. The Umbrella Academy, de Gerard Way e Gabriel Bá, teve uma versão excepcional na Netflix, que trouxe uma família disfuncional cujo trauma é anabolizado por seus poderes especiais. A cereja no bolo, porém, pertence a Alan Moore e Dave Gibbons, que criaram em Watchmen a versão mais extrema de super-heróis desconstruídos. A série traz vigilantes fantasiados como sujeitos com seus transtornos de personalidade, que se mostram ultrapassados com a chegada do primeiro super-humano real – tudo narrado em um tom filosófico e social envolvente e perturbador, que a versão para cinema lançada em 2009 por Zack Snyder mal conseguiu arranhar. A HBO lança em outubro uma nova série que continua os eventos dos quadrinhos, e não do filme, sugerindo o mesmo tom niilista.

Se existe uma imensa vantagem em The Boys é que, apesar do subtexto profundo, a série é absurdamente divertida, fácil de acompanhar, traduzindo o humor afiado de Garth Ennis em uma salada de sexo e sarcasmo, de violência e religião, em que não existem exatamente heróis e vilões, e sim gente estragada tentando achar sentido em um mundo cada vez mais cínico e caótico. Os personagens bem desenvolvidos ajudam a deixar o conceito o mais realista possível, e a trama principal, que envolve os segredos sombrios que a Vought guarda até de seus próprios super-heróis, ganha tempero com o drama pessoal de cada um. The Boys não sugere um universo, em que novas séries com diversos outros vigilantes fantasiados superpoderosos que habitem o mundo, possam dividir o mesmo teto. Seus criadores parecem estar satisfeitos em brincar com seu cantinho fétido e amoral, em que superpoderes parecem revelar apenas o pior em cada um. Melhor assim.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.