Topo

Por que o cinema precisa de mais filmes como Era Uma Vez em Hollywood

Roberto Sadovski

13/08/2019 04h58

O cinema hoje é feito de marcas. Produtos. Não é algo ruim, só é sinal dos tempos: hoje quem domina as bilheterias mundiais são propriedades intelectuais poderosas. Uma espiada nos cinco maiores sucessos mundiais de 2019 até agora mostra que o cinema é só parte de uma engrenagem que move outros produtos e plataformas. Vingadores: Ultimato, campeão supremo com quase 2.8 bilhões de dólares em caixa, movimenta um mercado gigantesco muito além dos cinemas. Ele é seguido por O Rei Leão, Capitã Marvel, Homem-Aranha: Longe de Casa e Aladdin – super-heróis, novas versões de desenhos animados clássicos, histórias e personagens conhecidos, ofertados com uma nova roupagem. O cinema, entretanto, não pode sobreviver apenas com marcas, com o lançamento estourado da semana. Sua longevidade a longo prazo repousa em boas histórias, o que por sua vez estimula o hábito de ir ao cinema. E boas histórias precisam de diversidade. Estimular diversos sentidos e emoções. Surpreender! Era Uma Vez em Hollywood cumpre exatamente essa função – e por isso é tão vital para a máquina da cultura pop.

Podemos argumentar que o nome de Quentin Tarantino é sua própria marca. Certo, bom pra ele. Mas seu novo filme é quase uma anomalia na tapeçaria do cinema contemporâneo. É uma história original, ancorada por ótimos atores, que cumpre a função dupla de entreter e surpreender. É um filme adulto, capaz de levar um público geralmente restrito ao "circuito de arte" a encarar uma sessão no multiplex mais próximo. É um "produto", por fim, que não se destina a um público-alvo definido – tornando-se, portanto, um filme para todos. Curiosamente, uma produção como Era Uma Vez em Hollywood seria a norma do cinemão anos atrás, quando o maior atrativo de um filme eram os astros em seu elenco e o tipo de história que os colocaria em cena. Em 1994, ano que Tarantino estourou com Pulp Fiction, a lista de maiores bilheterias no ano era muito mais plural, comportando filmes de ação totalmente distintos (True Lies e Velocidade Máxima), uma comédia boboca (Debi & Lóide), uma adaptação literária (Entrevista Com o Vampiro), uma versão de desenho animado (Os Flintstones), uma dramédia britânica (Quatro Casamentos e Um Funeral), uma adaptação de quadrinhos (O Máskara), uma única continuação (Perigo Real e Imediato), um filme que se tornaria um clássico moderno (Forrest Gump) e, veja só, O Rei Leão como grande campeão. Aposto que em janeiro de 1994 ninguém seria capaz de apostar em um top 10 assim!

Nós, de Jordan Peele, um autor de visão única

O cinema 100 por cento original, claro, ainda sobrevive – arrastando as asas, mas sobrevive! Nos Estados Unidos, somente um filme que não era uma adaptação e/ou continuação rompeu a barreira dos 100 milhões de dólares nas bilheterias. Foi o terror moderno Nós, de Jordan Peele, que cravou 175 milhões e estimulou discussões sobre seus temas e suas referências bem além das salas de cinema. Peele, assim como Tarantino, é um autor de visão única, capaz de traduzir suas idéias inquietantes em filmes espetaculares. Outros destaques foram Amigos Para Sempre, adaptação do drama francês Intocáveis e que encostou em 108 milhões de dólares, e o suspense Vidro, que mesmo encerrando uma trilogia (o que por si só já conta como marketing espontâneo), continua um filme modesto assinado por M. Night Shyamalan, que rendeu respeitáveis 111 milhões. Era Uma Vez em Hollywood já bateu os seis dígitos, mas como está em começo de carreira vai render mais alguns cascalhos antes de encerrar sua carreira como a maior bilheteria de um filme de Quentin Tarantino.

Para isso, claro, o público precisa ir ao cinema e descobrir o filme! Parece óbvio mas palavras precisam de ação. Explico. Quando Vingadores: Ultimato ocupou (e com mérito) todos os cinemas da galáxia com sua estreia, a maior reclamação do público era a falta de opções em cartaz – por esse motivo, muita gente optou por zapear pela Netflix para limpar o palato das fortes emoções da batalha final com Thanos. Ver filmes no sofazão embaixo de um edredom é uma opção, claro. Por outro lado, a oferta no cinema, mesmo com a dominância de Ultimato, sempre foi variada. Ok, estou sendo injusto, já que moro em São Paulo e a cidade possui um circuito exibidor que, mesmo com a massificação de certos blockbusters, sobrevive com uma programação alternativa. Para quem mora em cidades com poucas salas, o streaming é uma alternativa justa.Era Uma Vez em Hollywood, por sua vez, apaga a linha que separa o cinema autoral e original dos candidatos a arrasa-quarteirão com sua dose de star power: seu sucesso pode estimular o exibidor a salpicar sua programação com ofertas mais diversas, abrindo espaço para o colosso multimídia da vez com o cinema que estimula o hábito de ver filmes.

Temos muito chão – e muitos filmes! – antes da paulada A Ascensão Skywalker

O resto do ano tem opções para todos os gostos. It – Capítulo 2 certamente vai dominar a temporada quando entrar em cartaz em setembro – mas outro terror, o candidato a cult Midsommar – O Mal Não Espera a Noite, é uma produção original que merece ser igualmente descoberto. Assim como a ficção científica Ad Astra (com Brad Pitt, agendada para 26 de setembro), a aventura Projeto Gemini (com Ang Lee dirigindo Will Smith), o drama O Farol (com Robert Pattinson e Willem Dafoe), a dramatização da história real Ford vs. Ferrari (com Matt Damon e Christian Bale), a biografia Marighella (com direção de Wagner Moura), o drama Motherless Brooklyn (de e com Edward Norton) e o thriller Entre Facas e Segredos (com Chris Evans e Daniel Craig). Tudo chegando aos cinemas antes do rolo compressor Star Wars: A Ascensão Skywalker, que estreia em dezembro. Isso só pra ficar em filmes com astros no elenco, acreditando no faro de grandes diretores. Todos histórias originais. Todos capazes de movimentar as bilheterias e estimular os sentidos.

Em 1977, Guerra nas Estrelas chegou aos cinemas ocupando 43 cinemas – para comparar, o recente Hobbs & Shaw estreou em 4.253 salas. A saga espacial de George Lucas logo foi expandida para 757 cinemas, e o fenômeno foi tão intenso, a procura foi tão avassaladora, que os exibidores decidiram inaugurar dúzias e dúzias de novos complexos para abrigar o filme. Por um ano, o Star Wars original foi uma máquina, não apenas criando o conceito de filme-evento (algo ensaiado por Steven Spielberg e seu Tubarão dois anos antes), mas anabolizando o mercado de uma forma jamais vista. Quando o filme finalmente saiu de cartaz, os Estados Unidos tinham um punhado de novas salas que precisavam ser ocupadas. O resultado foi uma era de criação pura, em que diretores visionários ganharam mais espaço para capturar magia em celuloide. Cinema é uma simbiose, com grandes filmes possibilitando a existência de produções menores em escopo mas gigantes em ambição. Era Uma Vez em Hollywood é um pouco de cada. Justamente por isso, consegue o feito de unir públicos e possibilidades diferentes em torno da única ideia capaz de perpetuar a experiência cinematográfica: apreciar uma boa história.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.