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Coringa não parece trazer nada do Coringa das HQs (e por que isso é ótimo!)

Roberto Sadovski

30/08/2019 03h03

Roubei da internet: "Coringa parece ter sido feito em um mundo paralelo, em que os direitos do personagem entraram em domínio público e os cineastas foram lá e fizeram sua versão". Faz sentido. O filme de Todd Phillips, que chega aos cinemas no comecinho de outubro, traz uma interpretação muito peculiar do Palhaço do Crime. É um Coringa que tem uma identidade civil, um passado, uma origem. Um Coringa que existe longe da sombra do Batman, que aqui não teve nenhuma relação com seu mergulho em direção à insanidade. Um Coringa que poderia existir no mundo real, em que um sujeito que já não tinha exatamente as ideias no lugar percebeu que o mundo faz mais sentido quando ele não faz sentido algum. "Os fãs de quadrinhos provavelmente não vão curtir", alertou Phillips semanas atrás, quando o filme se preparava para girar no circuito dos grandes festivais de cinema pelo mundo. Ele pode estar certo. E isso é ótimo!

Uma boa história, afinal, vale muito mais do que demonstrar fidelidade canina à sua fonte. Histórias em quadrinhos são um ótimo ponto de partida, mas não são uma bíblia que precisa ser seguida à risca. Nem é preciso ir muito longe: NENHUM filme com super-heróis dos gibis tem a preocupação em ser um mero copy/paste com gente de verdade. O que se espera de artistas ao colocar as mãos em uma propriedade intelectual poderosa é justamente seu talento para a reinterpretação. Foi algo que observei com a volta do controle do Homem-Aranha nos cinemas para a Sony depois de cinco filmes com a assinatura da Marvel: alguns fãs aplaudiram, dizendo que "finalmente" o herói voltaria a ser "fiel" aos quadrinhos. O fato é que nunca foi! Homem-Aranha, que Sam Raimi fez em 2002, não se furta em tomar dezenas de liberdades com as origens do herói, a começar pelos lançadores de teia orgânicos, passando pela escolha de Mary Jane como interesse romântico (nas HQs ela só surge quando Peter saiu há tempos do colégio, já na faculdade), da aranha modificada geneticamente (e não por radiação), da morte do tio Ben (na rua, não em casa). Do mesmo jeito, é difícil achar esse espelho dos quadrinhos em Superman – O Filme (1978), em Batman (1989), em X-Men (2000), ou mesmo em praticamente todo o Universo Cinematográfico Marvel. São versões, e por isso são interessantes e surpreendentes.

Joaquin Phoenix em toda sua glória como o Coringa

No caso do Coringa, as HQs sequer possuem uma origem redondinha para o personagem. Apresentado na primeira edição de Batman, em 1940, o vilão foi mostrado como um ladrão e assassino, um sujeito egocêntrico e vaidoso que se torna ainda mais perigoso depois do acidente com componentes químicos que lhe deram pele branca e cabelos verdes. Nos anos 70, com a reformulação do Batman empreendida por Denny O'Neil e Neal Adams, a versão dominante foi a do palhaço com tendências homicidas, um vilão imprevisível em sua loucura que invariavelmente terminava em morte. Ele ganhou uma origem, se não definitiva, mas plausível e elegante na graphic novel A Piada Mortal, de Alan Moore e Brian Bolland. Moore emprestou elementos de sua criação nos anos 40 e o reescreveu como um comediante fracassado, obrigado a se vestir como o criminoso Capuz Vermelho para tirar sua esposa grávida da miséria. Foi uma tragédia só: sua mulher morre em um acidente doméstico, os criminosos que lhe propuseram o golpe são baleados pela polícia e ele, ao fugir do Batman, cai em um tanque de dejetos químicos, o que altera sua pele, seus cabelos e crava sua descida à loucura absoluta.

Não parou por aí, claro. Recentemente, a DC experimentou um reboot total de seus personagens batizado Os Novos 52, e o Batman descobriu, depois de um combate épico da Liga da Justiça contra o semideus Darkseid, que existem de fato três diferentes Coringas! Mesmo com a reinvenção seguinte da DC (é, eu sei…), Renascimento, esse mistério ainda não foi esclarecido, mesmo que tenha alimentado um sem número de teorias de fãs. Fora dos gibis, o Coringa também já teve diversas origens. Ele foi Jack Napier, o criminoso que matou os pais de Bruce Wayne em Batman, quando foi interpretado por Jack Nicholson. No desenho animado genial dos anos 90, o Coringa era o capanga de um gângster antes de ser desfigurado. Batman – O Cavaleiro das Trevas trouxe Heath Ledger como um psicopata com cicatrizes nos lábios, mas que usava maquiagem para deixar a pele branca e os cabelos verdes. Esquadrão Suicida trouxe Jared Leto como um gângster, alterado fisicamente também ao ser exposto por produtos químicos. Como o próprio Coringa diz em A Piada Mortal, "Se é para eu ter um passado, que ele seja de múltipla escolha".

Robert De Niro encara a face da loucura

Justamente por isso que a aparente decisão de Todd Phillips em varrer qualquer resquício de cânone em seu filme é também a mais acertada. Ao lidar com o conceito do Coringa – um sujeito levado à loucura e a uma vida de crimes por situações extremas -, ele criou uma história original, que ganha ainda mais fôlego com Joaquin Phoenix emprestando humanidade à história. Sabemos que ele é Arthur Fleck, comediante fracassado e levemente perturbado, que leva uma vida medíocre ao lado da mãe doente. Sabemos que Robert De Niro é o apresentador de um programa de auditório (ecos da série de Frank Miller Batman – O Cavaleiro das Trevas?) que serve de gatilho para a transformação de Fleck em Coringa. Sabemos que personagens da mitologia do Batman, como Alfred Pennyworth e Thomas Wayne, estão no filme. Mas é um Coringa descolado do malfadado "universo estendido DC", um filme que funciona sem precisar se inserir em uma engrenagem mais extensa. É uma história mais realista que serve como alerta sobre como a sociedade trata seus cidadãos menos afortunados. Um filme sobre loucura, sobre suas causas e consequências. Explorar temas assim é infinitamente mais interessante do que "ser fiel aos gibis". Esse, por fim, é o caminho mais bacana que a DC poderia escolher no cinema.

Será que Joaquin Phoenix vai rir por último?

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.