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Ari Aster, diretor de Midsommar: "Nem todo terror tem sua origem no mal"

Roberto Sadovski

18/09/2019 06h09

A vida nos traz algumas certezas. O Sol nasce e se põe. Em algum ponto todos nos apaixonamos, em algum momento nosso coração é feito em pedaços. E você vai se sentir perturbado, extremamente desconfortável e absolutamente apavorado ao final de Midsommar. O filme de Ari Aster é uma experiência sufocante, por vezes tola, mas nunca vulgar ou sem foco. Seu horror não tem pressa em dominar, e justamente por ser orgânico ele surge mais forte de que um batalhão de palhaços em CGI saltando na tela. É um assalto aos sentidos, uma jornada que caminha inexoravelmente a um fim trágico. Ainda assim, capaz de entrelaçar a platéia em uma trama bucólica, exageradamente violenta, carregada em simbolismo e difícil de apagar da memória. É o melhor tipo de terror, porque no fim não é o que ele é.

"Eu filmei um conto de fadas", conta Aster, por telefone, com voz pausada, preciso em cada colocação. "Não é exatamente um filme de terror, mas uma história que usa elementos do gênero para ser desenvolvida." O diretor de 33 anos fala com propriedade, já que foi com um filmaço de terror que ele estreou no comando de um longa, depois de lapidar seu talento em meia dúzia de curta metragens. Hereditário chegou aos cinemas ano passado durante a concorrida temporada do verão americano e deixou sua marca. A história da possessão da família encabeçada pela personagem de Toni Collette começa como um exemplar clássico do gênero, para aos poucos evoluir em uma obra corajosa, em que Aster não fez absolutamente nenhuma concessão. Ele decapitou a personagem mais jovem da trama ao final do primeiro ato e não suavizou a mão até o final apavorante. O terror em Hereditário tinha clara origem em uma entidade maligna, e o diretor apressa-se em ressaltar que não é o caso em seu novo filme: "Nem todo terror tem sua origem no mal".

Vilhelm Blomgren e Florence Pugh papeiam com Ari Aster num airbnb bucólico

O material promocional de Midsommar pode enganar, com seu trailer que sugere uma seita maligna atraindo jovens incautos para o sacrifício. Mas o filme, escrito pelo diretor, toma outro rumo, desenhado pela jornada de sua protagonista e os demônios que ela precisa enfrentar. Não são poucos. Dani (a espetacular Florence Pugh, que será vista ano que vem ao lado de Scarlett Johansson em Viúva Negra) perdeu a irmã e os pais em uma tragédia familiar – mostrada em uma cena silenciosa, chocante e dolorosamente realista. Ela, portanto, está um desastre, mas ainda tenta manter a lucidez ante o namorado emocionalmente distante, Christian (Jack Reynor), que estava prestes a lhe dar um fora. Em vez disso, ele termina a convidando para uma viagem de férias travestida de estudos antropológicos dos festejos de verão. Jack, acompanhado de Josh (William Jackson Harper) e Mark (o sempre confiável Will Poulter), partem com o colega Pelle (Vilhem Blomgren) para Hårga, a comunidade onde ele foi criado, um vilarejo quase medieval no coração da Suécia.

A celebração ancestral, objeto do estudo de Christian e Josh (Mark só está mesmo a fim de dar uns amassos em algumas suecas), é o ponto de partida para uma espiral descendente em que Dani, já atormentada por suas próprias tragédias, tenta encontrar algum conforto e equilíbrio – mesmo que o preço possa ser sua sanidade. Não é, entretanto, um filme sobre um "culto do mal": não existe o "mal" em Midsommar, a não ser pelo filtro de um estrangeiro que encare como barbárie os costumes de um povo tão geograficamente, socialmente e emocionalmente distante. Com a revelação paulatina da natureza das festividades do solstício de verão em Hårga, as pessoas "civilizadas" relativizam a escalada de violência da qual involuntariamente já fazem parte, uma estranheza anabolizada pela passividade desconcertante dos habitantes do lugar. O clima de festa dá espaço a uma atmosfera perturbadora, e nem algumas soluções menos inspiradas (já no terceiro ato alguns corpos começam a surgir em sequência, no pior estilo Sexta-Feira 13) tiram o brilho de sua narrativa, de suas cenas de impacto e da sutileza de suas ideias. O motivo talvez seja o foco em Dani, que precisa abrir mão da bagagem que carrega – o namorado que não a ama, a dor e a culpa pela morte dos pais e pelo suicídio da irmã – para, no lugar e nas circunstâncias mais improváveis, recomeçar.

Nem em 1 milhão de anos eu passaria férias com essa turma!

Rodado na Hungria, Midsommar exigiu esforço considerável por parte de seu elenco e equipe. "Construímos a vila do zero em um descampado que ficava a quase uma hora de carro de qualquer resquício de civilização", conta Aster. "Além de nos dar controle total sobre o ambiente, isso também permitiu que os atores sentissem o isolamento físico, essencial para entender cada aspecto de seus personagens." Como os habitantes de Hårga foram pincelados em talentos suecos, os forasteiros enfrentaram a barreira extra da língua, criando a atmosfera planejada pelo diretor. "Eu queria que os rituais fossem absolutamente críveis", continua. "Foram meses pesquisando dúzias de livros sobre práticas de comunidades isoladas, sobre folclore escandinavo, eu queria que Hårga fosse o mais real possível, que aqueles rituais e seu significado não fossem apenas palavras em ficção, que tivessem alguma ressonância." Talvez exatamente por esse cuidado que o horror de Midsommar seja tão urgente e tão agressivo.

As plateias acostumadas com as histórias sobrenaturais e criaturas fantásticas que formam a base do terror americano atual podem estranhar o ritmo e a narrativa de um filme como Midsommar. Quando menciono que a primeira referência que veio à mente foi O Homem de Palha, clássico do cinema inglês dirigido em 1973 por Robin Hardy, Aster se empolga. "Que bom que você percebeu isso, porque o cinema europeu moldou minha paixão", revela. "Eu sou, claro, cria de Alfred Hitchcock, mas não escondo que minhas influências estejam do outro lado do Atlântico." Quando pergunto se isso não dificulta sua vida na hora de "vender" o filme para quem pode eventualmente pagar a conta, ele é enfático. "É meu segundo filme pela (produtora) A24, estou escrevendo o terceiro para eles, e tive muita sorte", aponta. "Nunca tive ideais podadas, nunca me pediram para fazer terror com sustos fáceis." Ele pausa, respira e completa: " Eu gosto do cinema atual, mas muita coisa é fruto de decisões corporativas, e não artísticas. No fim, são produtos, e não filmes".

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.