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Scorsese diz que a Marvel não é cinema, mostrando que até os gênios erram

Roberto Sadovski

09/10/2019 01h50

Ao conversar com a Empire sobre seu novo épico, O Irlandês, Martin Scorsese terminou opinando sobre os filmes da Marvel. E a chapa esquentou. "Nunca assisti. Eu tentei, sabe? Mas aquilo não é cinema", disparou o diretor. "Honestamente, o que eles parecem, por mais bem feitos que sejam, com os atores dando seu melhor naquelas circunstâncias, é com um parque de diversões. Não é o cinema de seres humanos tentando transmitir experiências psicológicas e emocionais a outro ser humano." Scorsese, claro, é um gênio. Um dos maiores cineastas vivos, ele criou recortes dessa experiência humana em clássicos que redesenharam a topografia do cinema, de Taxi Driver e Touro Indomável a Os Bons Companheiros e O Lobo de Wall Street. Sua obra é urgente, é densa, é intensa e incômoda. Sabemos agora que, provavelmente, ele não faz ideia de quem seja Thanos. Ah, sabemos também que mesmo os grandes gênios erram.

A declaração de Scorsese de forma alguma pareceu intencionalmente ofensiva aos filmes da Marvel – e, por extensão, ao cinema pop em geral. É compreensível que aventuras de heróis fantasiados, envolvidos em histórias maiores que a vida, não tragam apelo a alguém dedicado a criar e compreender estudos de personagem em menor escala, com os pés firmes no solo. A Marvel, desde sua concepção como estúdio de cinema em 2008 ao lançar Homem de Ferro, dedicou-se a fazer entretenimento grandioso, e se mostrou extremamente bem sucedida nessa empreitada. Por isso que a comparação com parques de diversão não é descabida: ao longo da última década, os filmes que traduziram para o cinema dúzias de personagens dos quadrinhos da editora suscitaram justamente o tipo de resposta emocional e física de uma montanha-russa, com lágrimas e gritos e explosões de adrenalina e catarse coletiva. Desafio qualquer um a encontrar algum ponto negativo aí!

Martin Scorsese não sabe o que é a manopla do infinito

O que deixou muita gente ressabiada – inclusive a turma envolvida na arquitetura do universo cinematográfico Marvel como Robert Downey Jr. e Samuel L. Jackson – foi o infame "aquilo não é cinema". É uma declaração que, à distância, soa elitista, como se arte só pudesse ser interpretada e executada por um punhado de escolhidos que encaram o cinema como um templo sagrado, reservado para os poucos que o apreciam. Entretenimento de massa não seria, portanto, "cinema". O rap por muitos anos encarou a mesma soberba, com uma patrulha cultural cravando que "não seria música". Ou as histórias em quadrinhos "não sendo literatura". No Brasil mesmo tivemos um momento ridículo em nossa história contemporânea quando alguns baluartes da MPB foram às ruas protestar contra a guitarra elétrica! Não vou arriscar traduzir os pensamentos de Scorsese, mas no contexto da entrevista ele parece lamentar o fato de cinemas não abrigarem mais tantas histórias sobre pessoas de verdade como as que dominavam as salas de exibição, por exemplo, na década de 70. É um desabafo, ainda mais compreensível dadas as circunstâncias em que ele conseguiu produzir O Irlandês – mais sobre isso em um minuto!

O modo como a frase saiu, entretanto, foi infeliz. Em vez de abraçar a arte como grande cola para unir diferentes idéias e expressões artísticas, pareceu aumentar uma cisão entre as várias formas de fazer cinema. Porque, no fim das contas, é exatamente isso que a Marvel faz: cinema. Pode não trazer a densidade dos melhores trabalhos de Scorsese (e, convenhamos, sequer arrisca), mas transmite, sim, experiências humanas psicológicas e emocionais. Acusar o contrário é ignorar alguns momentos poderosos de puro cinema que o estúdio proporcionou nos últimos anos. É ignorar a evolução narrativa de Steve Rogers, o Capitão América, cuja jornada abraçou uma história de amor genuína, dilemas éticos, a carga emocional de uma vida inteira que lhe foi negada e, por fim, a decisão em finalmente colocar suas próprias vontades como prioridade. Tony Stark, o Homem de Ferro, trouxe uma trajetória igualmente rica, do playboy irresponsável que, ao encarar a própria mortalidade, encontra um altruísmo que ele sequer suspeitava possuir, culminando em seu sacrifício supremo. São temas de densidade dramática inegável, embalados com fogos de artifício, com ação e aventura, com fragmentos de entretenimento que ressoaram com força em plateias do mundo inteiro.

Mesmo produzido pela Netflix, O Irlandês é indubitavelmente cinema

Tudo isso é cinema, simples assim. "É como dizer que o Pernalonga não é engraçado", disparou Samuel L. Jackson ao saber da declaração de Scorsese, com quem trabalhou em Os Bons Companheiros. "Filmes são filmes. Nem todo mundo gosta dos dele. E todo mundo tem uma opinião, então tudo bem. Ninguém vai parar de fazer filmes." Robert Downey Jr. não deu tanta bola assim às palavras do diretor. Em uma entrevista no programa do radialista Howard Stern, o astro foi taxativo. "Bom, os filmes da Marvel são exibidos no cinema", disse. "Eu compreendo sua opinião. Acho que é como tudo em que precisamos de perspectivas diferentes para encontrar um denominador e seguir em frente. Mas não me senti insultado, e nem acho que Martin Scorsese está incomodado com os filmes da Marvel. É como dizer que Howard Stern não faz rádio, não faz nenhum sentido."

Curiosamente, o nome de Martin Scorsese nunca esteve tão associado a filmes baseados em personagens de histórias em quadrinhos como agora. Coringa, em cartaz pelo planeta, tem inspiração óbvia na obra do cineasta. Houve, por sinal, uma intenção de seus realizadores em envolvê-lo como produtor, o que não se concretizou. O diretor Todd Phillips revelou recentemente que Scorsese chegou a discutir brevemente o roteiro com ele. "Por fim ele disse que não poderia se envolver porque estava ocupado fazendo O Irlandês", explica Phillips. "Como rodamos praticamente ao mesmo tempo, seu envolvimento seria impossível." A atração de Martin Scorsese por Coringa não seria descabida, já que o filme seria justamente uma produção em menor escala que explora a condição humana com uma lente urbana. Cinema da melhor qualidade. Assim como tudo que a Marvel produziu em uma década. Assim como tudo que Scorsese produziu por toda sua vida. Não deixa de ser irônico, portanto, que O Irlandês precisasse se afastar do cinema para existir: nenhum estúdio encarou o orçamento de mais de 150 milhões de dólares, e o filme será lançado em novembro pela Netflix.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.