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Ang Lee: “Projeto Gemini é um novo começo para a linguagem do cinema”

Roberto Sadovski

11/10/2019 15h26

A primeira vez que conversei com Ang Lee foi durante o lançamento de Hulk. Até ali, ele era conhecido como o autor de filmes delicados que abordavam a dinâmica familiar de gente como a gente, de O Banquete de Casamento e Comer, Beber, Viver! a Razão e Sensibilidade e Tempestade de Gelo. O sucesso comercial e artístico de O Tigre e o Dragão, já na virada do século, revelou um autor capaz de criar espetáculos sem perder o elemento humano, e essa personalidade curiosa se traduziu em uma carreira que buscou enxergar a inovação tecnológica das ferramentas de fazer filmes com a arte de enxergar as pessoas vivendo as histórias – por mais fantásticas que fossem! Projeto Gemini é parte dessa jornada, uma ficção científica emoldurada em um filme de ação, executada em 3D inovador e definição de imagem cristalina, para mostrar o que acontece quando um homem enfrenta a si mesmo. É nesse encontro de filosofia e inovação que conversei com Ang Lee, papo que você confere agora!

Ang Lee e Will Smith nas filmagens de Projeto Gemini

Projeto Gemini chegou em suas mãos depois de anos circulando por Hollywood. Qual foi a primeira coisa que chamou sua atenção ao ler o roteiro?
David Ellison, dono da Skydance, me apresentou o projeto e de cara eu fiquei intrigado. A ideia de um homem encarando a si mesmo mais jovem me deixou curioso. Este homem ser Will Smith, que é um grande astro do cinema, me fez imaginar que sua versão aos 20 e poucos anos teria de ser inteiramente digital. Você mencionou Hulk, e em minha cabeça meio que tudo começou ali. Foi quando eu pensei em como dar vida a uma criação digital de forma realista e que tivesse alma e personalidade. Esse foi o gatilho.

Existe o desafio tecnológico em realizar algo assim, e existe a vontade de contar uma história poderosa. Como diretor, como você equilibra a demanda tecnológica com os gatilhos narrativos e emocionais da história de um homem que basicamente enfrenta a si mesmo?
Eu aceitei fazer Projeto Gemini justamente para mostrar as consequências de um homem enfrentando a si mesmo! Na verdade foi um privilégio saber que me contrataram justamente para ver se eu conseguia fazer essa engrenagem funcionar. Como é um filme de ação eu também tive de criar todo o espetáculo, o que para um cineasta é muito divertido. No fim do dia, é uma mistura de empolgação com responsabilidade! A trama precisa fluir, e o requisito é ter um toque levemente popular para que funcione como entretenimento. Mas acima de tudo isso, o apelo foi a ideia de colocar um homem e sua versão mais jovem em um único quadro, o que eu acho que nunca foi feito antes.

Hulk e seu inovador protagonista digital

Projeto Gemini poderia ser feito há, digamos, cinco anos?
Não, eu acredito que não. Foi extremamente difícil fazer hoje! Se conseguimos uma vez, não significa que conseguiremos de novo. O fato é que o ser humano julga a sim mesmo… Existe um instinto que nos faz entender que um personagem como o nosso, por mais perfeito que possa ser, é digital. O desafio é fazer com que ele pareça real, é fazer alguém acreditar. Isso é mais complicado do que as equações usadas para construir um rosto digital. É necessário ter alma. As pessoas continuam ressaltando a tecnologia, mas na verdade essa tecnologia é só um meio para uma realização artística.

Nesse sentido, qual a importância de trabalhar com um astro do porte de Will Smith? Afinal ele cresceu sob o olhar do público, da mesma forma se fosse Tom Cruise ou Keanu Reeves. É mais difícil, portanto, criar um avatar digital mais jovem quando temos uma imagem na cabeça de como ele era aos 23?
É uma faca de dois gumes, com coisas boas e coisas ruins. Um dos problemas é justamente esse que você mencionou. Por sinal você citou o único outro ator que poderia ter feito esse filme! (risos) Tivemos sorte quando Will Smith disse sim, porque ele não só trouxe o Will Smith jovem como também trouxe sua bagagem. O obstáculo, por outro lado, é que o conhecemos, mas nunca filmado em 3D. Conhecemos Will em 2D. E ele hoje é um ator melhor do que era aos 23. É outro comportamento, outra linguagem corporal, não é aquele de nossa memória. Eu não queria o personagem de Os Bad Boys. Seria mais fácil, mas não seria o que nosso filme precisava, que era alguém novo, com alma e personalidade específicas. Meu cuidado era criar algo semelhante, mas não idêntico. Então foi um desafio diferente. Mas o desafio nos deixou mais alerta, mais cuidadosos.

O belíssimo e inovador As Aventuras de Pi

Quando você dirigiu Hulk em 2003 foi um salto tecnológico gigantesco. Lembro que você interpretou a criatura para que os animadores tivessem referências. Agora temos Will em um traje que traduz sua performance para um personagem gerado por computador. Mas em A Longa Caminhada de Billy Lynn a evolução foi filmar usando velocidade de quadros maior. Por que foi tão importante refinar ainda mais essa tecnologia para Projeto Gemini?
Eu descobri o 3D quando filmei As Aventuras de Pi, e eu aprendi que a mente opera de forma diferente quando assistimos a algo em 3D. Aquele filme me deixou muito nervoso, já que é uma mídia completamente diferente. Não é só adicionar uma dimensão para o filme que conhecemos, e sim ampliar uma nova categoria de vocabulário. As imagens são processadas em nossa mente de forma mais nítida, e isso me levou a explorar esse tipo de linguagem, que não pode ser percebida com uma velocidade de 24 quadros por segundo, que é o padrão. Se você filma em 3D de verdade, e não o falso, convertido em pós-produção, é difícil manter a ilusão. Mas quando você normatiza o efeito, a imersão na história é mais orgânica. É necessário cerca de 100 quadros para entrar nesse mundo, para criar o truque. E uma resolução maior facilita o processo. Então é como um recomeço para a linguagem do cinema, e é algo que eu tenho buscado ao longo da última década.

Sua relação com a tecnologia digital começou em Hulk, mas em Tempestade de Gelo eram outros super-heróis que pontuavam a narrativa, com o personagem de Tobey Maguire lendo gibis do Quarteto Fantástico como moldura para a história. E lembro que você comentou que aquela dinâmica familiar era o que realmente te interessava no universo dos super-heróis.
Gosto que você tem boa memória! (risos)

Agora a Marvel deve relançar Quarteto Fantástico do zero. Seria algo que despertaria seu interesse?
Eu não sei, mas meu telefone ainda não tocou! (risos) Eu acho que a Marvel tem ideias muito específicas. Sabe, quando eu fiz Hulk nada disso era um gênero. Quando o filme saiu, Homem-Aranha já tinha traçado um caminho para o que seria um filme da Marvel, mas eram outros tempos. Eu não sei se eles teriam algum interesse, já que eu gosto de fazer as coisas do meu jeito, e Hulk era um drama psicológico, não um filme de super-heróis. Mas eles tem meu número!

Will Smith versão moleque maroto impressiona em Gemini

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.