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Morto Não Fala atravessa fronteiras ao recriar o DNA do terror brasileiro

Roberto Sadovski

15/10/2019 04h23

Existe algo desconcertante no modo em que Dennison Ramalho abre seu primeiro longa, Morto Não Fala. O plantonista de um necrotério, Stênio, assim que se vê sozinho com o cadáver que acabou de costurar pós-autópsia, troca uma ideia com o morto. Simples assim, sem nenhuma explicação, só um "Malandro, se meteu em briga de torcida, agora deixou sua família desamparada". O defunto, ainda confuso com sua rigidez post mortem, devolve com um "Gambá mexeu comigo, também vai queimar no inferno".Não existe surpresa, não existe ritual, só a naturalidade do diálogo que posiciona o tom deste filme feio, sujo, incômodo, assustador e absolutamente sensacional! Com elementos tão brasileiros quanto um vira-latas caramelo, o que traz identificação imediata com a plateia da terrinha, ao mesmo tempo em que não se prende em estereótipos, facilitando sua vida internacional, Morto Não Fala traz a combinação perfeita para criar um novo DNA do gênero: terror com cara de Brasil, mas falando um vocabulário global.

Vocabulário este que Ramalho lapidou em seus curtas, em especial Amor Só de Mãe e Ninjas. Aqui também não falta a opressão neo pentecostal, o desprezo pela autoridade, a crítica social e as consequências em lidar com forças ocultas que, não raro, cobram preço alto aos desavisados. Porque Morto Não Fala é um filme de casa mal assombrada em sua superfície, mas revela-se um estudo sobre culpa e loucura, sobre tristeza e pesar, sobre ação e reação. Porque não existe nenhum problema em Stênio conversar com os defuntos em seu necrotério até o momento em que ele usa uma informação do além que termina ceifando a vida de inocentes. Os sinais passam a ser mais frequentes, deixando claro que os mortos não gostam de ser usados, mesmo quando já passaram a outro plano. Essa fronteira tênue é rompida quando a vítima, Odete, que calha de ser a mulher do plantonista, recusa-se a deixar a esfera terrestre antes de ter sua sede de vingança aplacada.

Fabiula Nascimento não parece muito feliz em vermelho….

É daí que o talento de Ramalho como diretor fala mais alto. Porque ele entende que, mesmo com a trama sobrenatural, e todos os sustos pincelados ao longo da trama, o foco nunca deixa a realidade da vida de Stênio, que já era um abismo de tristeza e arrependimento e escolhas erradas muito antes de o além estender sua mão fria. Essa realidade, vale ressaltar, ainda é absurdamente violenta e realista, com os corredores do ILM entupidos de mais cadáveres do que seus funcionários são capazes de processar. Sangue aos litros pintam o chão, não raro coberto de vísceras. Os gritos dos vivos se confundem com o lamento cinza dos mortos (o efeito dos defuntos falando é perturbador). Quando a morte e a solidão são rotina, entregar-se à solidão e ao desespero, no caso de Stênio, parece ser a saída lógica. E é sua descida ao abismo pessoal que ele mesmo desenhou que faz de Morto Não Fala uma experiência superlativa. O terror que ele experimenta, afinal, é uma versão anabolizada das agruras de um país sucateado, em que nem mortos e nem vivos tem direito a repouso.

Para criar essa conexão emocional, foi fundamental escalar um ator que não encarasse o cinema de terror como um artifício, e sim com a mesma seriedade de qualquer outro gênero. A escolha de Daniel de Oliveira se mostra acertada desde o primeiro momento, quando ele conversa com cadáver fresquinho, trazendo um compromisso que jamais derrapa na paródia. Seu Stênio é uma pessoa triste, passiva, anestesiada pela rotina de morte e pobreza que sequer consegue dimensionar a grandeza de seu dom: para ele, falar com os mortos é só mais uma lasca banal em sua existência. É difícil não se identificar com seus conflitos demasiado humanos, e é impossível nutrir alguma simpatia quando ele se torna alvo da vingança sobrenatural que ele mesmo provocou. Ponto também para Fabiula Nascimento, que faz de sua Odete uma dona de casa miserável em vida e uma força da natureza revestida de ódio em morte. A atriz tem o papel mais suculento, injetando personalidade e um certo senso de humor mesmo quando está atrás de uma maquiagem neo zumbi caprichada.

Morto Não Fala traz terror universal com tempero brasileiro

Morto Não Fala pode, acima de tudo, determinar uma nova identidade para o cinema feito por aqui além de nossas fronteiras. Comédias podem até fazer barulho nas bilheterias, só para ficar nesse exemplo, mas dificilmente nosso humor se traduz em outros países. O cinema de terror, por outro lado, viaja por todo o mundo e é consumido por um público voraz: a linguagem do medo não precisa de tecla SAP. Dennison Ramalho dá um passo além, construindo uma narrativa de visão muito clara por cima da estrutura convencional do gênero. A ideia não é reinventar a roda, e sim dar um polimento caprichado, deixando as partes cromadas ainda mais brilhantes. O diretor, portanto, usa seu arsenal de referências, com sustos convencionais que ganham nova roupagem com nosso tempero urbano. Por fim, são as ferramentas de um gênero o qual Ramalho se mostra profundo conhecedor. Mortos que falam, vingança do além túmulo, fumaças e espelhos, são apenas perfumaria: O mal, capaz de congelar nossa alma, ainda está no coração dos homens.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.