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"Não existe condição digna de vida em uma prisão", diz diretor de Irmandade

Roberto Sadovski

28/10/2019 01h47

Na superfície, Irmandade parece beber da mesma fonte que tantos filmes (e agora séries) parecem dividir no Brasil. O crime. A ineficiência do sistema. A escalada da violência. Um olhar mais atento, porém, mostra que o diretor Pedro Morelli enxergou além da superfície, lapidando seu recorte em torno de um dos fenômenos sociais responsáveis pela erosão das políticas de segurança no país: a criação de facções criminosas em presídios, que estendem sua influência até controlar o crime, protegidos pelos mesmos muros que o cidadão comum acredita lhe blindar do alcance de criminosos. Ok, parece a mesma teoria que rege parte da produção audiovisual nativa que volta seu olhar para causas e consequências da violência. A diferença em Irmandade é a execução. Morelli buscou na ficção elementos para desenhar um problema bem real sob a lente do thriller policial, do suspense, da pluralidade de pontos de vista. A âncora é a personagem de Naruna Costa, advogada que se reconecta com seu irmão (papel de Seu Jorge), há anos encarcerado e agora líder de uma facção em ascensão. Essa conexão humana é o que conduz a trama, que se mostra ainda mais urgente quando levantada como espelho do Brasil atual – dias antes de meu papo com Pedro Morelli, denúncias severas de tortura em presídios no Norte do Brasil tomaram os noticiários. A realidade sempre provocando a ficção, um dos assuntos que abordamos no bate papo que você acompanha a seguir.

De onde veio Irmandade e por que contar essa história?
A Netflix trouxe para a (produtora) O2 a vontade de fazer projetos, e entre os temas propostos estava o de facções criminosas. Eu tinha interesse pelo tema, havia lido sobre o assunto, a Andrea (Barata Ribeiro, produtora da série) levantou essa possibilidade e eu segui em frente. Isso foi há dois anos, e agora estamos aqui, produto pronto! É um assunto de apelo popular imenso. E ainda assim nunca vi uma história sobre facções em primeiríssimo plano. Eu queria também mostrar o mundo por dentro de uma prisão, como e porque as facções são formadas. Existe um paradoxo muito interessante. As facções surgiram porque existe uma opressão muito grande no sistema carcerário por parte do estado, uma repressão muito violenta, não existe nenhuma condição digna de vida ali dentro. Sem falar nas diversas violações aos direitos humanos. Estamos vendo isso agora no Brasil, mas nos anos 90, quando a série é ambientada, era muito pior. As facções são resultado de prender as pessoas e tratá-las dessa forma. Assim, elas se unem para enfrentar essa repressão, traduzido em uma luta contra o sistema carcerário e finalmente contra o estado. Isso começou com pequenos grupos, a coisa foi crescendo e olha como estamos no Brasil hoje: uma guerra de facções que tomam conta do país inteiro. Me pergunto: faz algum sentido tratar as pessoas dessa forma dentro das prisões? Eu me sensibilizo com o tratamento de um ser humano dessa forma e ponto final. Agora, mesmo para quem não se sensibiliza com isso, me parece uma estratégia limitada e ineficaz.

O cara sai mais revoltado do que quando entrou…
E dentro de um grupo em que ele precisa continuar cometendo crimes em troca de proteção. É uma bola de neve em que violência gera mais violência. Infelizmente a maioria dos governantes atuais acredita nesse caminho da repressão e a gente vai continuar nesse ciclo vicioso.

Você começou a desenvolver Irmandade há dois anos, e lança justamente quando o Brasil deu uma guinada em direção a um radicalismo que deixa a série ainda mais urgente. Existe os dois lados para um artista, o primeiro ao perceber que o assunto está em evidência, mas ao mesmo tempo lamentar que esse assunto esteja em evidência?
A notícia dos abusos na prisão no Pará era a última coisa que eu queria ter lido, é muito triste ver que isso ainda existe. Pior é ver gente que apoia, o presidente da república falou que é uma besteira, difícil acreditar que isso acontece no Brasil. Não existe nenhum lado positivo em ver que isso ainda acontece. Mas, uma vez que ainda é um tema contemporâneo, fico feliz em trazê-lo para discussão nesse momento oportuno.

Naruna Costa encara Seu Jorge em seu habitat no mundo de Irmandade

A ideia sempre foi fazer uma série? Ou você chegou a pensar em outro formato?
Sempre foi como série. Até porque sempre foi com a Netflix e é o que eles queria. E temos planos, se tivermos mais temporadas, é contar a história dessa facção crescendo cada vez mais. Temos muito assunto para explorar. A primeira temporada mostra a facção pequena, dentro de um presídio só, e podemos mostrar uma expansão.

Os mecanismos para fazer cinema hoje estão complicados. Scorsese foi até a Netflix para viabilizar seu O Irlandês. O futuro do audiovisual no Brasil passa por essa parceria com o streaming, com as Tvs. Como você vê esse caldeirão de novos dispositivos para alavancar o audiovisual?
A gente está num momento muito triste do cinema brasileiro. O que está acontecendo com a Ancine é uma tragédia, muita coisa paralisada. Pior ainda, existe influências extremamente arbitrárias tentando determinar o tipo de filme que pode ser feito, principalmente filmes que defendem minorias, que são praticamente censurados. É lamentável, estamos em um péssimo momento. O contraponto é a entrada dos players no Brasil. A Netflix está forte, outros entram em breve, e isso está movimentando nossa indústria. É muito positivo, porque existe muita demanda e temos de formar novas pessoas. A indústria audiovisual está aquecida, ganhando musculatura e as coisas estão em movimento por causa dessas séries. Esperamos que a Ancine se normalize o quanto antes para que possamos manter a força nas séries e voltar com o cinema de verdade. Afinal, o que conseguimos fazer com cinema autoral brasileiro é através da Ancine. Eu tive uma relação incrível com a Netflix, tive muita liberdade artística, porém é um canal americano escolhendo quais séries são produzidas. Não é a mesma coisa de fazer um filme sem interferência. O conceito é diferente, uma coisa não substitui a outra. O cinema autoral brasileiro precisa existir com sua independência.

O que você enxerga como influências para criar Irmandade? Do ponto de vista estético, narrativo…
Cara, eu acho que bebi muito de Hitchcock. Eu queria focar muito mais no suspense do que na ação. Entregar a ação depois de cozinhar o suspense. Apostei muito nisso. Claro que Hitchcock é de outra época mas ele traz elementos que eu não vejo nenhum diretor fazer até hoje. É a maestria que ele tinha em nos deixar na ponta da cadeira com ansiedade, a criação da expectativa, só suspense, da tensão, é o tom principal da série.

Viu algo recentemente que te deixou com essa sensação?
Coringa. Fiquei chapado! Filmaço. Eu tinha altíssimas expectativas, porque no trailer eu já achei tudo lindo, a fotografia, o figurino. E eu sou muito fã do Joaquin Phoenix. Ainda assim, o filme superou as expectativas, eu não conseguia respirar. Saí do cinema muito mexido. Muito mexido.

A Netflix conseguir recuperar uma variedade de gêneros que o cinema vinha deixando de lado, em especial aqueles filmes com orçamento médio. Você acha que é o momento de começar a investir em mais diversidade de gêneros no Brasil?
Acho. Assim, aqueles que querem fugir de gêneros e trabalhar com algo mais autoral eu acho incrível. O importante é estudar muito gêneros, beber as fontes dos grandes mestres do cinema de todo o mundo, porém trazer muita verdade, autenticidade e brasileirismo na hora de criar o nosso gênero. Seria muito triste essa série por exemplo ter sido feita de forma pasteurizada, colocando o gênero acima de tudo, mostrando a realidade brasileira como se fosse em qualquer lugar, no México, na Ásia. Minha opção, mesmo trabalhando em um gênero, que é o thriller, foi alcançar esse equilíbrio entre um gênero que as pessoas reconheçam com uma autenticidade 100 por cento nossa. Mostrar uma história que só podia se passar no Brasil. Essa combinação é o que temos de mais rico. Afinal de contas, somos brasileiros, e temos de fazer algo que só um brasileiro poderia fazer!

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.