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Fernando Meirelles: "Dois Papas é sobre o momento em que perdemos a fé"

Roberto Sadovski

08/01/2020 02h25

Entre as várias cenas incríveis de Dois Papas, que traduz em ficção os encontros entre o papa Bento XVI e o cardeal Jorge Bergoglio, antes de ele se tornar o papa Francisco, está um jogo de futebol.

A seleção argentina em campo, uma batalha contra a poderosa seleção alemã, e dois homens acompanham a partida pela TV, vibrando a cada jogada – ao menos um mais do que outro. É um momento inusitado entre Bento e Bergoglio, em que percebemos que os dois não estão ali representando uma instituição, e sim suas próprias paixões, suas próprias convicções. É nessa interação, que humaniza figuras tão inatingíveis, em que reside o charme de Dois Papas – e que fica explícita a direção elegante e delicada de Fernando Meirelles.

Afastado dos cinemas desde o drama 360, lançado em 2011, o responsável por pérolas como Cidade de Deus e O Jardineiro Fiel interrompeu as "férias" da tela grande, curiosamente em um projeto bancado pela Netflix, que mudou irreversivelmente o mercado audiovisual mundial. É sobre essa mudança, e também sobre fé, sobre humor, sobre família e sobre o futuro que eu conversei com Meirelles, no papo que você acompanha agora!

Seu último trabalho no cinema foi 360, de 2011. Quanto desse intervalo foi dedicado a Dois Papas?
Dois Papas foi pá e bumba! (risos) O produtor desse filme (Dan Lin) é um chinês-americano que mora em Los Angeles, muito católico, muito envolvido com projetos sociais, então em 2015 ele me ligou para saber se eu queria fazer um filme sobre o papa, porque ele gostava do papa, e eu também sou fã. Eu topei, mas em seguida entrei na preparação da abertura dos Jogos Olímpicos. Fiquei meio 2015 e 2016 inteiro envolvido com a cerimônia. Passaram os jogos, depois ele encontrou uma peça de teatro que ele gostou, pediu para o próprio autor adaptar para o cinema e ficou esperando. Eu encerrei o trabalho com a Olimpíada em setembro, ele me mandou o roteiro por outubro e novembro, em dezembro eu topei. Passamos três meses visitando locações, ida e volta entre Itália e Argentina. Em setembro de 2017 a gente estava filmando. Foi rapidinho!

Você é católico?
Sou católico oficialmente mas não vou à igreja, eu ia até os 8, 9 anos. Depois que meus pais pararam de ir, eu também parei…. Eu vou em casamentos (risos), em missa de funeral, mas não frequento.

Anthony Hopkins e Jonathan Pryce em umas conversas ao pé do ouvido…

Quando você leu o roteiro, o que mais chamou a sua atenção? Foi a interação dos dois protagonistas, foi esse peso político que permeia a vida dos dois, o que você leu e pensou que precisava ser contado?
A atração principal foi o papa Francisco. Acho que esse papa é uma das vozes mais importantes no mundo hoje, ele entende o mundo como uma coisa só, um planeta em que uns são dependentes dos outros. Não olha como nação, esse nacionalismo horroroso e equivocado, e ele é um dos poucos caras que tenta enxergar o mundo assim. Já fui com essa vontade e o roteiro era espetacular. Ele tem um nível de entendimento que funciona muito bem. São dois caras de idade que discordam em tudo, mas eles fazem parte de uma instituição e precisam ter um entendimento, aquilo precisa andar. Eles precisam buscar alguma afinidade. E isso é uma questão muito atual, você odiar um cara da sua família que votou em que você não votou… É uma abordagem que todo mundo entende. A questão política traz a agenda do papa, aquele discurso contra o sistema econômico, que eu acho um discurso muito pertinente, essa ideia de construir pontes e não erguer muros. Imigrantes fazem parte da realidade de todo país, tem de ser incluídos, não adianta fazer um muro. E tem uma camada espiritual também, claro, com um papa e um cardeal conversando. Mas que não é algo específico da igreja católica, acho que fala com qualquer pessoa que tem qualquer religiosidade, que é a ideia de perder a conexão com o divino, de questionar a fé. Existe um poema de João da Cruz que o Bento XVI, o Anthony Hopkins, cita no filme, "A Noite Escura da Alma", que fala justamente sobre isso: toda pessoa que tem fé passa por um momento na vida em que perde essa conexão. E é desesperador, acreditar em algo mas não sentir mais essa ligação. Ter de atravessar um deserto para reencontrar. O filme no fundo é sobre a noite escura da alma do Bergoglio. Inclusive tem uma cena em que ele caminha numa bruma, não vê o horizonte, que é exatamente esse momento.

Você trouxe uma leveza para contar Dois Papas que humaniza os protagonistas, que não são mais vistos como figuras inalcançáveis. O roteiro original já trazia esse senso de humor ou foi algo que você trouxe quando entrou no projeto?
O texto tinha uma ou outra situação cômica, mas eu forcei bastante a barra, cara. Eu lembro quando assisti A Rainha, do Stephen Frears, e aquilo de assistir a rainha como uma pessoa normal, que vai ao banheiro, que pega o carro e dirige, aquela galocha, era o charme do filme. Daí eu li o roteiro e era o diálogo de um cardeal com o papa, duas instituições. Se eu tivesse feito um filme sobre duas autoridades falando não funcionaria. Então fui buscar as pessoas atrás de tudo aquilo. Talvez tenha sido minha única direção para os dois atores. Eu disse que não tinha interesse na formalidade, tinha de ser sempre pessoal. São dois homens conversando! Lembro uma cena em que eu pedi para o Tony Hopkins tirar aquele bonezinho, e ele adorou a ideia! Não é o papa falando, é uma pessoa falando. Quando a gente tira os adornos parecia um senhorzinho em uma casa de repouso, pensando. Isso que é legal!

Fernando Meirelles dirige Jonathan Pryce em Dois Papas

Os dois já estavam atrelados ao projeto? Como foi o processo de escolher Jonathan Pryce e Anthony Hopkins?
O filme era muito mais sobre o Francisco do que sobre o Bento XVI. No processo o Bento ganhou mais protagonista, mas tinha muito mais do passado do Francisco no roteiro, a gente foi cortando e equilibrando mais o jogo. Como era um filme sobre o Francisco, a primeira coisa que eu fiz foi entrar no Google e buscar imagens dele, sentir como era seu jeitão para pensar em um ator que tivesse aquela presença física. Só que quando eu dei um Google apareceram várias montagens dele com o Jonathan Pryce, muitas fotos dele em Game of Thrones, fazendo uma piada com os dois. Eu já pensei que tinha a ver, conhecia seu trabalho, vi outros filmes dele e achei uma entrevista longa no YouTube. Daí percebi que ele tem um certo senso de humor, faz piadas auto depreciativas, tem uma leveza que parecia o espírito do papa, não é alguém arrogante, é alguém com quem a gente quer conversar. Arrisquei, mandamos o roteiro e ele topou no ato. A Netflix também precisava de um nome grande, é um filme caro, e eu tinha uma lista para o Bento. Já tinha trabalhado com o Anthony Hopkins, e pensei que se ele topasse seria o melhor do mundo. E ele topou.

Você mencionou a Netflix, e é curioso que a gente sempre diz que hoje existem os filmes pequenos, independentes, e os grandes espetáculos cinematográficos que precisam ser caros para demandar o tipo de atenção que o público talvez exija. O filme que segue um caminho intermediário parece diminuir, e a Netflix tem investido muito justamente nesse filme. Você acha que o futuro do audiovisual passa por essa parceria com cinema, streaming, TV? Filme tem de ser no cinema ou a Netflix acabou com isso?
Já estamos em um outro momento, já mudou! Esse formato na verdade não exclui o cinema. Antes de ser lançado na plataforma Dois Papas passou por 37 festivais de cinema, nenhum filme meu fez tanto festival! Já ganhamos vários prêmios antes mesmo de chegar ao streaming. Também entrou em cartaz no Brasil antes da plataforma, e não deve sair de cartaz enquanto estiver trazendo público ao cinema. Uma coisa não exclui a outra. Roma, acredite, ainda está em cartaz em quize, vinte salas ao redor do mundo. Em julho, mesmo disponível na Netflix já por oito meses, Roma ainda estava em cartaz em setenta salas de cinema.

O Danny DeVito me disse em fevereiro que essa era uma não-polêmica, porque o importante é o filme estar disponível para o público, e o bacana é existir a escolha.
Exatamente, é uma não-polêmica! A Netflix aumentou muito a plateia. No Brasil, o público potencial de cinema são 2, 3 milhões de pessoas. Essa é a fatia que tem o hábito de ir ao cinema. Já o número de pessoas que assistem a Netflix chega a 50 milhões!. O público potencial é muito maior. Um filme de nicho no cinema tem público potencial de 200 mil pessoas. Na plataforma é 20 milhões, então dá para investir mais, porque o nicho é enorme e é global.

Três homens e uma partida de futebol!

Mas ainda precisamos chegar ao meio de campo entre o exibidor e a Netflix, já que em muitos países a relação azedou totalmente. Como você vê essa discussão?
Acho que essa discussão logo vai ficar para trás, porque não tem jeito! É um movimento irrefreável. Por exemplo, eu não gostaria de fazer um filme que fosse direto para a plataforma. Quando conversaram comigo, Dois Papas ia entrar nos cinemas e na Netflix juntos. Não era muito legal, mas eu topei. Só que o sucesso de Roma mostrou que ter uma janela maior entre o cinema e o streaming era um bom esquema. Ainda é o segundo ano, eles estão testando com O Irlandês, História de Um Casamento e Dois Papas.

A Olimpíada já ficou no passado, Dois Papas está no mundo. Seu plano é voltar ao cinema com força total?
Confesso que eu não ia. Mas esse processo foi tão legal que eu já peguei um outro filme! (risos) Eu parei um pouquinho de fazer filmes porque eu escolhi fazer séries no Brasil, principalmente por causa de família, neto pequeno e tal. Agora… bom, os netos ainda estão pequenos (risos), mas era também uma opção. Ficar viajando pelo mundo não é fácil, esse mesmo a gente rodou na Argentina, na Itália e finalizamos em Londres. É duro não ter uma vida cotidiana. Mas agora já estou assinando outro projeto com a Netflix, também pra rodar em setembro, vou tocar mais um.

Depois de O Jardineiro Fiel, eu lembro que você comentou que haviam te chamado para fazer um James Bond. Ainda tem vontade de abraçar algo com essa escala?
Bom, o projeto que me chamaram nunca aconteceu. Era o "jovem James Bond", era sua história bem antes de ele se tornar James Bond. O que o levou a se tornar 007. Era um conceito bem legal!

Agora que Sem Tempo Para Morrer vai encerrar a era de Daniel Craig na série, podia ser a chance de retomar o projeto. Você arriscaria?
A história era muito boa! Mas é algo muito grande. O diretor de arte de Dois Papas, o Mark Tildesley, que também trabalhou comigo em O Jardineiro Fiel, é meu amigo de passar o Natal juntos, ele adora o Brasil. A gente estava terminando as filmagens em Roma e ele saiu para trabalhar nesse novo Bond, Sem Tempo Para Morrer. Eu encontrei com ele em Londres em outubro e perguntei "E aí, acabou o filme?". Ele suspirou, deu de ombros e disse, "Nada, ainda filmamos mais um mês". Ele não suporta mais, disse que é infernal, a máquina é muito grande.

O que eu gosto de Dois Papas é justamente que você faz uma história de escopo enorme parecer intimista.
Pois é, mas a gente construiu a Capela Sistina! Tudo que você vê na Praça São Pedro, que parece aquela coisa de documentário, é tudo green screeen, é tudo CGI, tudo efeito especial! Aquelas ceninhas que parecem ter custado 200 reais a diária na verdade custaram milhões! Não deixaram a gente filmar lá! Eu até brinquei, Dois Papas é como gastar 40 milhões de dólares e parecer que gastamos 2 milhões. (risos) Meu esforço é fazer esse monte de dinheiro parecer barato!

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.