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Cinema sem firulas: O Brasil precisa de mais filmes como A Divisão

Roberto Sadovski

24/01/2020 04h13

A Divisão é um filme bruto. É violento, não economiza no sangue, é tenso e não se furta em deixar um rastro de cadáveres pelo caminho. Bruto. É também um ótimo exemplo de como produzir cinema de gênero no Brasil sem colocar uma "mensagem" no meio do caminho – é um filme, não uma máquina de fax. Nas mãos de Vicente Amorim, o filme transplantado da série da GloboPlay traz um recorte da crônica policial carioca contemporânea, o combate de uma "epidemia de sequestros" que tomou o Rio de Janeiro em meados dos anos 90 por parte da DAAS, a Divisão Antisequestro da cidade. Não seria nenhum problema se a trama enveredasse pelo realismo social que já rendeu produções de primeira em nosso cinema. Mas é para aplaudir a decisão em fazer de A Divisão um thriller policial acelerado e empolgante, com alguns caminhos familiares ao gênero (policiais corruptos, políticos incompetentes) traduzidos em cinema pop de qualidade.

A trama é de simplicidade franciscana. Nos anos 90, o Rio de Janeiro foi tomado por uma onda de sequestros que os criminosos enxergavam como uma indústria extremamente lucrativa. A abdução da filha adolescente de um deputado faz com que o chefe de polícia coloque dois times antagônicos trabalhando juntos. A turma encabeçada por Santiago (Erom Cordeiro) entende a mecânica da cidade, e tocam o trabalho com um dedinho na corrupção, fazendo acordos com traficantes e conhecendo o submundo bem de perto. Do outro lado está o delegado Mendonça (Silvio Guindane), visto como "herói" pela imprensa e pela população, com tolerância zero para corrupção e sem o menor problema em usar de tortura e violência contra bandidos. Os métodos diferentes logo se mostram complementares. Os policiais precisam, de alguma forma, encontrar uma arena em comum para colocar as desavenças de lado e, mesmo com as imensas dificuldades apresentadas pela malha criminosa da capital carioca, resolver o caso.

Tire dois segundos para apreciar a poesia nessa manchete de jornal….

Ao saltar para o cinema, A Divisão abraça sua vocação em ser um legítico filme policial pop, em que discursos abrem espaço para ação. poucas vezes se viu uma produção tão caprichada, com perseguições e tiroteios pelas vielas do Rio que o cinema não via desde o segundo Tropa de Elite, uma década atrás. É muito tempo para um gênero que deu tão certo por aqui não ganhar novas edições. Por outro lado, cinema de ação é uma engenharia complexa e cara, em que verborragia não dá conta do recado: ao contrário do folhetim televisivo, aqui o público precisa ver a ação, não ouvir uma descrição. Mais ainda: ação precisa de estrutura para funcionar, precisa existir à medida em que o roteiro exige, e precisa de personagens com arcos dramáticos bem definidos para que exista alguma conexão emocional com quem está do lado de cá. Somos bombardeados, afinal, com dúzias de exemplares importados que são muito estilo e pouca substância, e um deslize é o que basta para uma ideia se tornar uma farsa. No caso de A Divisão, a preocupação com desenvolvimento de personagens, em entender a cabeça de quem se mete a combater o crime em uma metrópole violenta, faz toda a diferença.

O elenco é ferramenta fundamental para mergulhar na trama. Aqui a dinâmica entre Cordeiro e Guindane, policiais com bússolas morais tão distintas, humaniza a trama ao mostrar as consequências de uma vida ao lado do crime – sem precisar, entretanto, de uma investigação profunda sobre o que os move. Lembro de Michael Mann, ao dirigir a versão para cinema de Miami Vice, explicar que seus personagens eram inspirados em policiais da divisão de narcóticos que, acima de tudo, estavam naquela vida pela adrenalina de prender bandidos. Esse ímpeto pela justiça, mesmo em um sistema que dá margem para a corrupção, é o que move os protagonistas de A Divisão. Se abre espaço para uma reflexão sobre o papel do policial em uma grande metrópole, seus laços estreitos com criminosos e o papel da política na operação policial, é também um filme policial legítimo, cinema pop para quem busca duas horas de escapismo puro. O melhor de dois mundos, e um caminho que a produção nacional faria bem em seguir com mais frequência.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.