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Jóias Brutas: O maior mistério é a ausência de Adam Sandler no Oscar!

Roberto Sadovski

03/02/2020 04h20

Pena que não consegui assistir ao excepcional Jóias Brutas ainda ano passado. Teria entrado na lista dos melhores filmes de 2019, cabeça a cabeça com Parasita. A torcida por uma indicação ao Oscar para Adam Sandler teria sido ainda mais entusiasmada. Não só a minha: qualquer pessoa com paixão por cinema que confira essa obra prima dos irmãos Bennie e Josh Safdie, que no Brasil pulou uma estreia nos cinemas para aterrisar direto na Netflix, vai encontrar um trabalho superlativo do ator, uma interpretaçao complexa, de diversas camadas, que entrega um personagem perturbado, ansioso e violento. Uma pessoa fragmentada pela vida que escolheu e pelos vícios que surgiram ao longo do caminho. É difícil imaginar que estamos vendo o mesmo ator de tosqueiras como Gente Grande, Pixels e o recente Mistério no Mediterrâneo. É um verdadeiro renascimento artístico para Sandler, que já havia flertado com filmes mais densos em sua carreira, sem nunca suger esse talento colossal por trás da fachada de "comediante".

Até porque não existe essa bobagem de "ator do comédia". Se um artista ganha destaque ao abraçar um gênero, não significa que ele deva se trancar em uma caixa. De Peter Sellers (Muito Além do Jardim) a Jim Carrey (O Show de Truman), de Jerry Lewis (O Rei da Comédia) a Robin Williams (Gênio Indomável), comediantes famosos demonstraram sensibilidade muitas vezes insuspeita ao encarar um papel dramático – o que nem deveria ser comédia, porque é justamente isso que bons atores fazem. Adam Sandler construiu sua carreira como um adulto infantilizado, com grunhidos e caretas disfarçados de performances em bobagens divertidas como O Rei da Água, O Paizão e Zohan, abraçando também seu jeitão de galã feio em comédias românticas de enorme sucesso (Como Se Fosse a Primeira Vez, Esposa de Mentirinha, Click, você provavelmente assistiu a todas). Com o gênero esvaziando nos cinemas, fechou contrato com a Netflix e continuou fazendo filmes ruins de enorme sucesso. De alguma forma, Sandler tornou-se aquele primo distante que aparece no almoço do aniversário da vó, que é insuportavelmente chato mas, mesmo assim, conta as melhores piadas.

Adam Sandler pega o pior uber pool da história…..

Parecia um ponto confortável para a carreira de um, vá lá, comediante. Mas Sandler sabia que seu talento não era um fenômeno unidimensional, e talvez esperasse o momento e o filme certo. Curiosamente, ele recusara Jóias Brutas em 2009, quando os irmãos Safdie lhe ofereceram o projeto. O roteiro seria, então, rodado com Jonah Hill como protagonista, mas o posicionamento das estrelas em Hollywood fez com que o filme voltasse para Sandler em 2018, já em outro ponto de sua carreira. E foi o casamento perfeito. Porque não é o caso de um astro que "desaparece" em um papel. Ainda é claramente Adam Sandler em cena, mantendo intactos muitos de seus trejeitos demonstrados em dúzias de filmes. O que faz de sua performance ainda mais fascinante: talvez essa força sempre estivesse lá (com certeza Paul Thomas Anderson a enxergou em Embriagado de Amor), e talvez ela simplesmente precisasse de uma válvula de escape condizente com seu talento, um material à sua altura. O resultado é um trabalho brilhante, em que o ator consegue uma conexão emocional surpreendente, resultando em uma obra brutalmente realista, em que a ansiedade experimentada pelo protagonista é capturada pelas lentes dos irmãos Safdie de maneira tão preocupante e incômoda que torna o filme uma experiência fisicamente exaustiva.

No centro de tudo está Howard Ratner. Dono de uma joalheria, ele tem entre sua clientela rappers e atletas. Logo fica claro que sua vida tem brilho tão superficial quanto as pedras que exibe: seu casamento hoje é só uma fachada, sua amante não preenche o vazio como ele imaginava. Para piorar, Howard é viciado em apostas, e os escambos com jóias e dinheiro alimentam uma prática que lhe colocou na mira de pessoas muito perigosas. Para coroar esse coro grego, ele finalmente recebe uma opal negra, pedra rara que lhe tomou dois anos e dezenas de contatos para trazê-la da Etiópia, que encanta o jogador de basquete Kevin Garnett (o astro da NBA interpreta a si mesmo) e torna-se o centro de uma tragicomédia que pode a) resolver todos os problemas financeiros e pessoais de Howard ou b) conduzí-lo em uma espiral descendente que ameaça atingir um ponto de não retorno. Família, amigos, amores (o elenco, de Eric Bogosian à revelação Julia Fox, é excelente), tudo se torna acessório para o personagem enfrentar seus próprios demônios e tentar encontrar alguma lógica em meio ao caos.

Os irmãos Safdie dirigem Sandler nas ruas de Nova York

Os irmãos Safdie já haviam mostrado seu estilo ácido e acelerado no excepcional Bom Comportamento, que em 2017 deixou na poeira quaisquer dúvidas sobre o talento dramático de Robert Pattinson, calando em definitivo seus detratores que ainda insistiam em enxergá-lo como o vampiro cintilante de Crepúsculo. Talvez o superpoder dos diretores seja enxergar no artista mais improvável uma força que talvez nem ele mesmo desconfie possuir. No caso de Jóias Brutas, sua confiança em Adam Sandler é tamanha que eles não se furtam em depositar sua narrativa em sua capacidade de entregar um personagem tão amoral e antipático, tão egoísta e imperfeito – talvez, justamente por tudo isso, tão demasiado humano, reflexo de um mundo em constante estado de pânico. A câmera não o abandona em (quase) nenhum momento da narrativa, nos colocando a seu lado quando ele insiste em investir em apostas esportivas (e no monólogo brilhante em que Howard expica sua compulsão). No pedido patético por uma segunda chance no casamento, na fúria inútil ao ser confrontado por cobradores violentos, quando sua emoções se estilhaçam ao perceber que a queda rumo ao abismo é inevitável. Tudo pontuado pela fúria maníaca de Adam Sandler, a mesma que emoldurou tantas comédias (para o bem e para o mal), aqui finalmente canalizada para o que é, de longe, o melhor trabalho de sua carreira. Ao não reconhecer Jóias Brutas, o Oscar comete uma de suas maiores injustiças: a Academia está cega.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.