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Oscar faz história (e, pra variar, a coisa certa) com a vitória de Parasita

Roberto Sadovski

10/02/2020 06h44

Uma vitória de Parasita na cerimônia do Oscar era improvável, mas não impossível. Improvável porque jamais, em mais de nove décadas de história, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas concedeu sua honraria máxima a um filme de língua estrangeira. As apostas, até por conta das escolhas dos sindicatos e de outras premiações, apontavam uma vitória segura de Sam Mendes e seu 1917 – o que seria justo e digno! Mas a maré aos poucos começou a virar a favor do filme de Bong Joon Ho, especialmente ao longo das últimas semanas, em que o diretor coreano e seu elenco eram aplaudidos entusiasticamente de pé pela elite de Hollywood, hipnotizados por uma verdadeira obra de arte em forma de filme. Estava claro que seria uma disputa entre o conflito na Primeira Guerra Mundial, capturado pelas lentes claustrofóbicas de Mendes, e o conflito ainda mais profundo, deflagrado pelo poder econômico e pela desigualdade social, retratado na alegoria de Bong. Ganhar o Oscar de melhor roteiro original (batendo Quentin Tarantino e Noah Baumbach) foi o começo. Depois veio a esperada estatueta de melhor filme internacional. Depois de melhor direção. Finalmente, de melhor filme. Impossível? O Oscar 2020 redefiniu o que isso significa em uma noite incontestavelmente histórica.

Ainda assim, foi uma noite de poucas surpresas, algumas decepções, de belos discursos e de uma festa que, apesar de ameaçar por muitas vezes arrastar o passo, logo pegou fôlego e seguiu sem maiores traumas até o final glorioso. Os quatro atores premiados – Joaquin Phoenix, Renee Zellwegger, Brad Pitt e Laura Dern – já tinham seus nomes gravados nas estatuetas desde sempre. Coringa, filme com maior número de indicações, foi para casa com um solitário segundo Oscar, o de sua trilha sonora, assinada por Hildur Guðnadóttir. Roger Deakins não tinha concorrentes com sua direção de fotografia por 1917. Elton John e Bernie Taupin Foram premiados. Assim como Taika Waititi. Assim como Toy Story 4. Assim como os favoritos em quase todas as categorias técnicas (fui razoavelmente bem em minhas previsões). Não foi desta vez que o Brasil foi premiado com um Oscar: o documentário Indústria Americana levou o prêmio, mas a diretora brasileira Petra Costa cravou seu nome na história da cerimônia e, apesar da polarização alimentada por uma turba de ignorantes, representou o país de maneira exemplar – jamais, em nenhuma premiação artística (ou esportiva, ou social) em qualquer parte do mundo, vi uma campanha negativa promovida pelo presidente de um país contra o representante de seu próprio país. Uma vergonha.

Bong Joon Ho recebe a estatueta dourada das mãos de Jane Fonda…. e faz história!

A sensação foi amplificada pela vitória de Parasita. Para ser bem honesto, não lembro um último vencedor do Oscar ganhando aplausos tão unânimes como o filme de Bong Joon Ho. O próprio entregou discursos humildes, reconhecendo seus ídolos, sem nunca esconder sua admiração por seus pares. Difícil de encaixotar em um gênero, Parasita é um filme que bate pesado na desigualdade de seu país, a Coreia do Sul, escancarando que os diferentes degraus sociais são, muitas vezes, mera questão de ponto de vista. Não alivia para a classe alta, alheia às mazelas de quem vive abaixo de sua renda. Não alivia também para os desassistidos, que não hesitam em entranhar-se na rotina de uma família de classe alta para esquecer, ao menos enquanto puder, da miséria que é rotina no andar de baixo. Seria impensável o governo sul-coreano armar uma campanha, com dinheiro público, para atacar a reputação do filme e de seus criadores. A realidade é outra: na Coreia do Sul a arte é protegida e estimulada, financiada e ensinada, para que o país tenha cada vez mais representatividade no mundo, promovendo liberdade criativa para seus artistas. Não é à toa que o k-pop é um dos estilos musicais que dominam a cena em todo o mundo. Não é à toa que Parasita tenha disparado sua carreira com a Palma de Ouro em Cannes, e agora ganhe a honraria máxima na maior premiação do cinema mundial. Um prêmio, vale salientar, americano. A distância em que o Brasil, hoje, encontra-se do Oscar, só para ficar nesse microcosmo pop, é imensurável.

A maior lição que a Academia mostrou ao mundo é que sua vontade de mudar para melhor é real. Nas semanas que antecederam a premiação, alguns votantes, sob condição de anonimato, deram entrevistas a revistas e sites especializados em cinema, não escondendo sua xenofobia e garantindo que o Oscar não deixaria de falar inglês. A realidade mostrou que eram vozes ínfimas, que não fizeram diferença ante o esforço global da organização em alinhar-se com o pensamento que arte não possui fronteiras. A língua, afinal, sempre foi um obstáculo intransponível no tocante ao Oscar. Eu torci para O Tigre e o Dragão quando Gladiador foi consagrado em 2001. O Artista, vencedor em 2012, era uma produção francesa, embora ambientada na Hollywood do começo dos anos 1930, espelhando o cinema mudo, com seus únicos diálogos recitados em inglês. Amor perdeu para Argo no ano seguinte, mas não era o melhor filme entre os indicados (diria que nem Argo, mas é uma discussão para outro dia). Parasita é o primeiro filme sul-coreano a ganhar o Oscar, e também o primeiro longa falado em outra língua na história a também garfar o prêmio (agora batizado) de melhor filme internacional. O recado é claro: as coisas mudaram. E podem continuar mudando.

"Se eu pintar de dourado e tacar uma cabeça careca vai ficar igualzinho…"

Por fim, depois de anos tropeçando em absurdos (12 Anos de Escravidão jamais será melhor filme que Gravidade ou O Lobo de Wall Street; Spotlight é incrível, mas indigno de ser mencionado na mesma frase de Mad Max: Estrada da Fúria; e nem me deixem começar de novo sobre Green Book….), a Academia escolheu como melhor filme do ano aquele que, de fato, foi o melhor filme do ano. Parasita triunfou sobre uma coleção de talentos que refletiu com louvor a qualidade cinematográfica de 2019. Bong Joon Ho arrancou sorrisos e aplausos sinceros de ídolos como Martin Scorsese (que viu seu O Irlandês sair de mãos abanando mesmo com dez indicações) e mostrou ser demasiado humano ao afirmar que, ganhando ou não, ia beber por um mês (quem nunca?). Pode ser que a indústria cinematográfica encare no futuro essa vitória como um soluço incômodo, e o Oscar volte aos negócios de sempre já ano que vem. Pode ser que o momento de Parasita, de Bong Joon Ho e de toda sua equipe seja apenas isso, um momento. Mas eu prefiro acreditar que não é por aí, e que a cerimônia do último domingo tenha sido sintoma de um sentimento de mudança para um mundo torto, mostrando que o único caminho para todos nós é abraçar a diversidade, abraçar as diferenças, abraçar um mundo longe das trevas. A arte, afinal, salva.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.