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Cinema, paixão e futebol sob o olhar de Jean-Pierre Jeunet

Roberto Sadovski

11/04/2014 20h24

Jean-Pierre Jeunet está ansioso. Não em conversar comigo, claro. Mas no jogo de futebol que se desenrola na tv gigante em um hotel de luxo em São Paulo. O diretor de Alien: A Ressurreição e O Fabuloso Destino de Amelie Poulain está no Brasil para participar do Festival Varilux de Cinema Francês (que acontece em 45 cidades até o dia 16 de abril, confira a programação neste link). Mas o Barcelona está penando para segurar o Atlético Madrid, e Jeunet segue o papo assim, um olho no gato, outro no peixe. À vontade, o assunto na ponta da língua do cineasta de 60 anos é Uma Viagem Extraordinária, seu mais novo filme, que depois da exibição no festival chega aos cinemas em maio. Rodado em 3D, a aventura é um road movie que acompanha um prodígio de 12 anos, Spivet (Kyle Catlett), de Montana a Washington para receber um prêmio. "Mas o meu 3D é daqueles que presta, pra ser visto com óculos mais avançado, com bateria, não essas porcarias de plástico que escurecem a tela", dispara, voltando em seguida a acompanhar o futebol.

Uma Viagem Extraordinária foi rodado em 3D, com a narrativa pensada para o formato. "Eu detesto essas conversões que muitos estúdios fizeram em filmes que não tinham a ver com a tecnologia", continua Jeunet. "Um trabalho horroroso, que desmerece quem realmente pensa em 3D para avançar a narrativa." Quando pergunto sobre conversão para seus trabalhos anteriores, o diretor vai na unha: "Acho que todos os meus filmes podiam ser em 3D. Eu pensava no formato antes de ele existir". Sua maior crítica é o modo como a tecnologia é banalizada por produtores e exibidores que querem ganhar um troco fácil. "O público merece o trabalho que seu dinheiro paga", explica. "Em meu filme eu tenho cenas com elementos flutuando, é como se você pudesse esticar a mão e pegar. Participar do quadro. Essa é a beleza do 3D, é ser arrebatado." Dos filmes atuais que usaram a tecnologia, Jeunet destaca a exuberância de Gravidade, de Alfonso Cuarón: "Me deixou sem fôlego, é um filme extraordinário… Claro que, na metade, eu me dei conta de que estava assistindo a uma animação. Ainda assim, arrebatador!"

A fúria lúdica de Ladrão de Sonhos

A fúria lúdica de Ladrão de Sonhos

A carreira de Jean-Pierre Jeunet estourou em 1991. Depois de testar suas habilidades numa série de curtas, ele estreou em longas com Delicatessen. De cara as marcas registradas do diretor – um esmero visual, um flerte com o lúdico, uma leveza na condução de atores em situações extraordinárias – ficou evidente. Seu filme seguinte (e meu preferido) foi Ladrão de Sonhos, de 1995. A direção era dividida com Marc Caro, mas Jeunet atendeu sozinho quando Hollywood chamou. Seu talento para combinar narrativa densa com imagens deslumbrantes o tornaram candidato ideal para conduzir Alien: A Ressurreição, de 1997. Comento que tive uma longa conversa com David Fincher, que me relatou cada segundo agonizante que foi trabalhar em Alien³ e pergunto se a experiência com o cinemão deixou marcas. "Eu sei como David se sente, a primeira coisa que fiz quando me chamaram foi ligar para ele", diverte-se. "Ele só me disse uma coisa: 'Não faça o filme!'." Entre uma risada e outra, e um passe e outro do Barça vs. Madrid, ele continua: "Mas foi uma ótima experiência. Eu deixei claro o que queria fazer e entendi qual a parte deles como produtores: interferir na escolha do elenco, atuar na edição. É um produto deles, mas é meu filme, criativamente é meu. Quando recentemente me chamaram para fazer uma versão do diretor, eu disse que a versão que existe é a do diretor! Tenho orgulho de meu Alien".

O trabalho já não foi tão suave assim com As Aventuras de Pi, originalmente um filme de Jeunet. Ele trabalhou no roteiro por dois anos, procurando locações na índia e trabalhando a logística de fazer com que um tigre pudesse "atuar" em um filme. "O CGI não estava bom ainda, mas tínhamos avançado muito. Só que meu projeto ia custar 85 milhões de dólares, e o estúdio queria gastar 60 milhões", atira. "Quando me pediram para recomeçar do zero, pensei em dois anos de trabalho desperdiçados, retirei-me e fui dirigir Micmacs. No fim Ang Lee terminou usando boa parte de meus designs, mas meu roteiro era uma adaptação de verdade do livro, e não aquele copy/paste que fizeram." Jeunet reclina-se na poltrona e continua, com um sorriso: "O filme de Ang terminou custando 150 milhões de dólares… Mas ele é amigo do presidente de Taiwan, eu não. E foi daí que veio o dinheiro".

Sigourney Weaver e Winona Ryder em Alien: A Ressurreição

Sigourney Weaver e Winona Ryder em Alien: A Ressurreição

De olho na TV, com o placar ainda zero a zero, pergunto a Jeunet se ele não teria interesse em trabalhar em uma série, onde hoje parece haver mais liberdade para cineastas como o próprio David Fincher, responsável pelo sucesso da Netflix, House of Cards. "Eles não precisam de mim, tem trezentos cineastas lá doidos para trabalhar!", exalta-se. "E não adianta eu produzir algo na França, a língua é uma barreira para atingir o mercado internacional." Eu aponto que Uma Viagem Extraordinária é falado em inglês e ele rebate: "O dinheiro é francês e canadense, mas a língua tem de ser  universal. Hollywood é um lixo, mas eu adoro Hollywood. Não tem como não gostar, é onde está o dinheiro, é onde está o talento". Quando o papo escorrega para a nova geração de cineastas de seu país, ele suspira. "Estou trabalhando com um jovem talento francês, um garoto talentoso, muito moderno", entrega, sem dizer o nome. "Ele está rodando seu filme com minha equipe… Mas ele não faz ideia de quem seja Wim Wenders! Temos tamanho acesso à informação, mas há falta de interesse. Hoje eu nem me espanto quando alguém, vem falar sobre um filme clássico, algo da idade da pedra, como Pulp Fiction. Pulp Fiction já é um filme antigo!"

Jeunet toma mais um gole de água e olha para o céu cinzento de São Paulo. Eu digo que a produção do cinema nacional tem tentado encontrar sua voz, que muitos jovens cineastas brasileiros também tem pouco apreço pela história. Ele crava o olhar em mim e dispara: "Paixão. Você precisa estar apaixonado pelo que faz. Você precisa estar apaixonado por sua história, e por seu roteiro, e por cada elemento que constrói um filme. Sem paixão um filme é vazio, é oco". Mais um olhar para a cidade que se aperta na hora do rush do lado de fora e ele me atropela. "Eu jamais filmaria em São Paulo, é uma cidade feia, não dá para se apaixonar", fala, com um sorriso de canto de boca. "Já o Rio de Janeiro… Ah, eu poderia filmar lá. É fácil se apaixonar pelo Rio". As outras pessoas no lobby do hotel se agitam, um gol foi perdido, e a atenção de Jeunet volta para o telão. Pergunto se ele está empolgado com a Copa. "Claro que sim, vai ser uma festa!", conta, antes de eu dizer que muitos brasileiros não estão tão empolgados assim. "Eu sei, eu acompanhei as notícias quando cheguei", continua. "Mas acho que, quando o campeonato começar, todos vão deixar um pouco os problemas de lado. Vocês são muito apaixonados por futebol!"

Amelie Poulain, o filme que virou fenômeno pop

Amelie Poulain, o filme que virou fenômeno pop

E muitos são apaixonados por O Fabuloso Destino de Amelie Poulain, filme-assinatura de Jeunet, que se tornou fenômeno desde seu lançamento, em 2001. A sombra de Amelie o persegue, e é sempre seu filme mais citado, mais debatido, o que desperta maior curiosidade. Será que existe limite para ele repetir as histórias sobre a francesa que vive em seu mundo de sonhos? "A verdade é que às vezes parece que eu nunca mais fiz nada, ou não tenho nenhum trabalho anterior", explica. "Mas é um fenômeno pop! Como não gostar de algo que eu fiz e que tomou tamanha proporção?" Rapidamente Jean-Pierre Jeunet saca seu smartphone e abre as fotos, passando velozmente uma a uma, até chegar em uma moça que não contém o sorriso. "Olha aqui, tirei ontem aqui em sua cidade", diz, me mostrando a imagem da moça. Ele mostra a foto seguinte, um close de seu braço, que traz uma tatuagem do perfil de Audrey Tautou como Amelie Poulain. "Não é maravilhoso?" Pensando bem, é sim!

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.